quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Espírito Santo: retrato de tragédia anunciada


O ajuste fiscal, que acabou com todos os programas sociais, agora cobrou seu preço. Governador se vê em beco sem saída: PM, sua truculenta protetora, rebela-se 

A periferia, onde fica às claras a desigualdade, convive agora com guerras entre gangues. Grande número de mortes parece estar ligado a grupos de policiais. Das sacadas, enxerga-se uma realidade que nunca foi verdade para a classe abastada




Por Mateus Cordeiro

Desde a última sexta-feira (03), o Estado do Espírito Santo vive uma das piores crises da sua história. Um movimento de mulheres, familiares e amigos de policiais se concentra em frente aos quarteis da PM capixaba e impede a saída dos militares para o serviço diário. Na verdade, mais do que uma simples manifestação dos familiares, trata-se de uma greve velada da categoria que é constitucionalmente impedida de realizar qualquer paralização.

As reivindicações dos militares são, principalmente, uma reposição salarial na ordem de 43%, vale-alimentação, ganho de periculosidade, readequação do horário de trabalho e também melhores condições para a prestação do serviço à população. O Governo nega as exigências, se recusa a negociar e, enquanto isso, a criminalidade cresce desenfreadamente no Estado. A Polícia Civil diz que não há mais espaço no IML para contabilizar as 87 mortes – muitas delas, transmitidas ao vivo graças aos compartilhamentos instantâneos nas redes sociais –  desde o início da paralização dos PMs; com isso o medo e o caos se espalham em velocidade assustadora. Uma explicita referência a Síndrome do mundo mau, conceito proposto pelo pesquisador americano George Gerbner, as imagens transmitidas contribuem para criar um conceito de mundo perverso e perigoso.

A tragédia capixaba era uma questão de tempo. O Estado, que, até sete anos atrás, figurava como o segundo mais violento do Brasil, melhorou muito os seus índices e reduziu o número de homicídios caindo para “honrosa” décima segunda posição entre os Estados brasileiros que mais contabilizam mortes violentas. Entretanto, os investimentos foram realizados basicamente em polícia e não em estratégias que realmente solucionam o problema da violência a longo prazo, como educação, assistência social e geração de emprego e renda.

O ajuste fiscal ou política de austeridade, como diz o Governador Paulo Hartung, que basicamente acabou com todos os programas sociais e de acolhimento para a população agora cobrou o preço. O Governador, conhecido nacionalmente pelo modelo eficaz de gestão, viu ruir seu império construído na base acordos políticos, sucateamento do serviço público, e muita publicidade institucional. A falta de diálogo é marca característica das gestões Hartunguistas, que sempre usaram a PM para punir, bater e dissipar qualquer movimento social que se aproximasse de seu Palácio, no Centro da capital Capixaba. PH, como é apelidado do governador pelas ruas do Espírito Santo, se vê em um beco sem saída, afinal, seus protetores principais agora se rebelam.

O número de homicídios claramente assusta e acontece principalmente nas periferias da Grande Vitória. Os bairros mais pobres, onde fica às claras a enorme desigualdade social, convivem agora com guerras entre gangues que sempre existiram, porém, eram inibidas de atuar nas ruas iluminadas, graças a PM. Mas não se pode negar: o grande número de mortes também parece estar ligado a grupos de policiais que se colocam como justiceiros. Já na parte nobre das cidades capixabas, sucessões de roubos, saques e o clima de surpresa. É da janela, das sacadas e varandas, acostumadas com a vista eterna para o mar tão especulada pelas imobiliárias, que se pode ver uma realidade que sempre existiu na periferia, mas, que nunca foi verdade para a classe abastada. E não é filme de Hollywood passando em canal pago, na TV de 52 polegadas. É a vida real!

A crise é grave e, por enquanto, parece não ter solução. O exército patrulha as cidades e não passa nenhuma sensação de segurança; o governo vê seu projeto de cortes sociais em cheque e não abre mão de continuar reduzindo direitos; a polícia militar não recua e pressiona causando um efeito dominó com possíveis paralizações de outras categorias; e a população de baixa renda morre!



Saiba mais


Meus dias em meio ao caos no Espírito Santo. 




Diário do Centro do Mundo

Por Sacramento

A violência urbana nunca foi o meu temor número um, talvez pela sorte de jamais ter presenciado tiroteios, sofrido assaltos ou abordagens truculentas da polícia.

Depois da paralisação da Polícia Militar iniciada no último sábado (04) no Espírito Santo, meu estado mental mudou. Passei a me preocupar com a possibilidade de invadirem o prédio onde moro ou de enfrentar algum perigo andando na rua.

Com a PM aquartelada a criminalidade explodiu na Grande Vitória e em algumas cidades do interior, na forma de arrombamentos, saques, roubos à mão armada e assassinatos.

As notícias de barbárie se espalharam pelo Whatsapp e Facebook. Primeiro arrastões e assaltos. Depois relatos de tiroteios. Logo surgiram imagens de corpos. Não demorou e vieram cenas de execuções de suspeitos de roubo.

Os mais de 90 homicídios registrados entre o sábado e esta quarta-feira (08) levaram o Departamento Médico Legal à superlotação. Para piorar o que era péssimo, criminosos roubaram 36 kg de explosivos de uma pedreira.

Este clima de insegurança enclausurou a população em suas casas. Ônibus deixaram de circular, escolas, universidades, repartições públicas, unidades de saúde, bares, lojas e shoppings fecharam as portas.

Evita-se sair, a não ser por necessidade inadiável. Profissionais liberais, autônomos e pequenos comerciantes se angustiam a cada dia que passa sem que possam trabalhar.

A única movimentação acontece nos supermercados, sempre lotados por causa do horário de funcionamento reduzido e da incerteza quanto aos próximos dias que leva a população a estocar alimentos em casa.

Tirando isso, há pouco movimento nas ruas. Regiões normalmente agitadas durante a semana estão vazias e silenciosas como em dias de jogo do Brasil na Copa do Mundo. A atmosfera, contudo, é pesada, tensa.

Senti isso quando saí rapidamente à tarde para ir à farmácia. Primeiro um medo incomum ao sair de carro da garagem do prédio, embora nada de anormal tenha acontecido na minha rua até agora.
A esse medo se juntou o desconforto de perceber olhares desconfiados em minha direção, sinal de que as coisas não estão fáceis para quem tem os traços físicos do suspeito padrão.

Apesar de tudo, minhas angústias soam até mesquinhas se comparadas às de amigos e conhecidos que vivenciaram medos mais concretos, como barulho de disparos à luz do dia e tentativa de invasão de residência de madrugada.

Da minha prisão domiciliar em um condomínio relativamente seguro e com acesso a wi-fi, consigo apenas me compadecer com quem está mais vulnerável. É impossível, para mim, imaginar o pavor de ser atingido por uma bala perdida ou o tormento de precisar ir à padaria com um bebê de colo.

Sinto um medo que vem por procuração, por meio de vídeos e áudios do Whatsapp. Forte o suficiente, porém, para me manter encarcerado em meio ao caos da Grande Vitória.



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