"A trama perversa do golpe abriu a caixa de Pandora dessa república das bananeiras: escancarou não somente a podridão do sistema político, como também expôs o nível de manipulação e de controle que a mídia exerce sobre as instituições e a sociedade brasileira, o envolvimento de uma juristocracia elitista e conservadora com o submundo da política, o fascismo de setores da classe média, a fragmentação e as disputas dos setores democráticos e de vanguarda; enfim, a farsa de uma democracia altamente excludente", diz o cientista político Robson Sávio Reis Souza; "somente quando a sociedade brasileira acordar desse pesadelo anestesiante do inferno do vale-tudo que se abateu sobre nós é que teremos condições de superar o golpe"
Em grupos de conversa, na sala de
aula, em reuniões entre amigos sempre sou questionado sobre o abismo no
qual se encontram as instituições, os atores políticos e a própria
democracia brasileira depois do golpe.
Há um espanto geral, principalmente
em alguns setores da classe média, um pouco mais politizada, acerca do
nível de despudor, mesquinharia, ladroagem e desfaçatez que tomou conta
da política nacional.
Como explicar uma cena política tão
decadente, que parece nunca se aproximar do fundo do poço? Consolida-se a
convicção segundo a qual o escândalo ou o saco de maldades de hoje
sempre será abafado ou superado pelo escândalo ou pela perversão de
amanhã.
E, nesse jogo, parece que tudo é natural e normal.
Como entender uma cidadania
anestesiada, incapaz de reagir frente à criminalidade organizada que
tomou conta do estado brasileiro?
Aqui cabe o conceito de crime
organizado, porque se trata de um conluio de grupos políticos imersos na
corrupção que operam dentro do Estado, atuando de forma cooperada,
envolvendo o judiciário e o aparelho político com vistas à construção de
salvaguardas e redes de influência, objetivando a consolidação do poder
econômico e político de tais grupos.
Poderíamos recorrer a uma das
variáveis do mito de Pandora para tentar explicar o que acontece no
Brasil. Diz o mito que uma mulher de extrema beleza foi enviada por Zeus
para se casar com Epimeteu. O presente de casamento era uma caixa que
continha todos os males, que ficou conhecida como “caixa de Pandora”.
Uma vez que Pandora não conseguiu conter a sua curiosidade e abriu a
caixa, ela libertou todos os males e desgraças sobre a humanidade.
A trama perversa do golpe abriu a
caixa de Pandora dessa república das bananeiras: escancarou não somente a
podridão do sistema político, como também expôs o nível de manipulação e
de controle que a mídia exerce sobre as instituições e a sociedade
brasileira, o envolvimento de uma juristocracia elitista e conservadora
com o submundo da política, o fascismo de setores da classe média, a
fragmentação e as disputas dos setores democráticos e de vanguarda;
enfim, a farsa de uma democracia altamente excludente, erigida e
sustentada na desigualdade social e nos privilégios de elites, com
instituições republicanas dominadas por grupos de interesse ensimesmados
e não comprometidos com princípios basilares de um estado democrático e
de direito.
Quando a ética - que referencia as
relações sociais e políticas - é quebrada abre-se o caminho para o
vale-tudo. Todos os males vêm à tona e não há mais limites no trato com
os negócios públicos. As leis e a Constituição passam a ser reles
acessórios sistematicamente manipulados pelos grupos no poder. Como
disse Jucá: “É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional.
(...) Com o Supremo, com tudo.”
Os políticos já não se referenciam
no povo, origem e fonte do poder. O botão do “dane-se” é ligado, como
podemos observar na entrevista de Temer dizendo que não tem medo da
impopularidade ou na fala do juiz Moro, segundo o qual o concurso à
magistratura permite ao juiz a aplicação a lei a partir das suas
convicções. É o que acontece no Brasil atual.
Por um lado, presenciamos, quase
anestesiados, um festival de desmandos e corrupção generalizados
envolvendo os principais atores dos poderes públicos. Um complô
midiático blinda e referenda o grupo no poder, naturalizando os
comportamentos e práticas eivados de toda a sorte de perversidades. Como
se tudo fosse natural, necessário e compreensível... Têm-se a sensação
de um conformismo frente à banalidade do mal, esta ocorrência
tenebrosamente cotidiana da crueldade institucionalizada, mais ou menos
nos mesmos moldes refletidos por Hannah Arendt.
Noutra ponta, observamos uma
população inerte, sem esperança e confiança no comportamento ético dos
ocupantes dos cargos públicos nos três poderes.
Ora, não é possível falar em
democracia nessas condições. Afinal, o comportamento viciado e corrupto
dos ocupantes dos cargos públicos além de não inspirar confiança nas
instituições públicas, deslegitimando-as, acaba por estimular a violação
de quaisquer valores éticos também pelos cidadãos. Afinal, as pessoas
passam a repudiar as instituições pelo fato dos ocupantes dos cargos
públicos não buscarem o bem comum.
Os cidadãos percebem que os atores
políticos trabalham contra o povo; atuam despudoradamente combatendo os
interesses daqueles que são os verdadeiros titulares do poder. Ora, fica
evidente que nessas condições não se pode falar em democracia. Na
política do vale-tudo não há limites; não há regras; não há pudor. É
como se os golpistas, pelos seus atos, conchavos e omissões, dissessem à
população: estamos no poder e podemos tudo. Uma espécie de inferno de
Dante: “Deixai a esperança, ó vós que entrais”...
E é também recorrendo a Dante que
encerro este texto e respondo aos meus interlocutores atônitos em
relação a tudo o que acontece em nosso país. Em “A divina Comédia”, o
escritor italiano Dante Alighieri propôs uma inversão da lógica medieval
que imperava até então: onde tudo era atribuído ao poder divino,
sobretudo o destino dos homens, Dante sugeria que era o homem quem
decidia seu futuro com suas ações. Assim, a Divina Comédia é antes de
tudo um livro sobre escolhas. Assim, podemos concluir que mudança não
virá com um salvador de pátria; nem brotará desse sistema
político-jurídico-midiático sustentado na corrupção. A mudança está nas
mãos dos cidadãos. Nossas escolhas nos manterão no inferno ou nos darão
uma chance de subir ao paraíso.
Ou seja, somente quando a sociedade
brasileira acordar desse pesadelo anestesiante do inferno do vale-tudo
que se abateu sobre nós é que teremos condições de superar o golpe. Não é
uma empreitada fácil. Mas, parece ser o único caminho. Portanto, a
resposta ao dilema vem com uma pergunta crucial: o que cada um
individualmente e nos grupos sociais, eclesiais, sindicais pode fazer
para fecharmos a caixa de Pandora e recuperarmos nossa democracia?
Fonte Brasil 247
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