Num certo sentido, a greve é contra o sistema político – porque a democracia transformou-se numa farsa. Em Brasília, um presidente ilegítimo e um Congresso suspeito continuam de costas para o povo. Todas as pesquisas mostram: a esmagadora maioria da população e contra as mudanças na aposentadoria e a terceirização do trabalho. Mas ambas as propostas podem ser aprovadas, por deputados e senadores suspeitos de receber propinas.
Por Antonio Martins | Vídeo: Gabriela Leite
Crescem os sinais de que a greve geral desta sexta-feira será um
protesto vasto e múltiplo. A iniciativa foi do movimento sindical, mas a
chama da revolta se alastrou. Ela é visível, por exemplo, nas ações do
MTST – que convida para marcha até a casa de Temer, em São Paulo; no
apoio explícito oferecido ao movimento por parte da igreja católica; nos
comunicados que os professores das escolas mais tradicionais enviam aos
pais de seus alunos; nas convocações espontâneas que inundam as redes
sociais; em uma multidão de gestos semelhantes.
Num certo sentido, a greve é contra o sistema político – porque a
democracia transformou-se numa farsa. Em Brasília, um presidente
ilegítimo e um Congresso suspeito continuam de costas para o povo. Todas
as pesquisas mostram: a esmagadora maioria da população e contra as
mudanças na aposentadoria e a terceirização do trabalho. Mas ambas as
propostas podem ser aprovadas, por deputados e senadores suspeitos de
receber propinas. E para aprová-las, o Palácio do Planalto recorre a um
arsenal de métodos corruptos: liberação de dinheiro (R$ 800 milhões)
para os deputados, na forma de emendas parlamentares; lotemamento de
empresas estatais; negociação aberta de cargos públicos.
Ou seja: o país é governado por uma casta política. Esta casta não
presta satisfações à sociedade, mas ao poder econômico que financia suas
campanhas. Enquanto esta situação persistir, os ataques aos direitos
sociais e a entrega do país às grandes empresas não cessarão.
* * *
A greve geral é um grito contra esta democracia de fachada – mas
depois dela faremos o quê? Alguns estão de olho nas eleições de 2018,
que se aproximam e tendem a ganhar cada vez mais atenção. É uma resposta
muito pobre. Em 2018, se nada for mudado, será eleito um Congresso
muito parecido com o atual. Igualmente interessado em fazer favores ao
poder econômico – e dele receber agrados. Igualmente desligado da
sociedade e do debate dos grandes temas nacionais. Ainda que se eleja um
presidente de esquerda, seu poder será, sob o sistema atual,
extremamente reduzido – quase cosmético. Estará limitado pelo Congresso,
pela mídia, pelo Judiciário. Terá de fazer concessões e barganhas. E
estas barreiras, que já eram enormes antes do golpe, serão agigantadas
após as contra-reformas radicais que o governo Temer está aprovando.
Em vez de limitar nossa ação política ao voto, não seria mais
produtivo – e muito mais fascinante – lutar por uma transformação de
todo o sistema político? Não seria possível desejar a reinvenção da
democracia, hoje em crise não só no Brasil, mas no mundo todo?
* * *
Na última semana, um conjunto de movimentos sociais que acredita
nesta hipótese voltou a se articular, depois de três anos. Chama-se Plataforma pela Reforma Política.
Realizou, em 2014, um plebiscito informal sobre o tema, do qual
participaram 8 milhões de pessoas. Esteve desarticulado, devido às
tempestades que marcaram a cena nacional. Voltou a se reunir num
seminário em Brasília, do que participaram dezenas de ativistas, de todo
o país. A retomada certamente tem a ver com os novos tempos que
vivemos; com a necessidade de constuir, para uma situação de exceção,
respostas que não sejam banais, que não se limitem a depositar um voto
em urna.
Durante três dias, os integrantes da Plataforma pela Reforma Política
reviram e atualizaram o leque de propostas que construíram há quatro
anos. Em breve, os resultados serão apresentados à sociedade. Debate-se a
hipótese de construir um decálogo, que reúna as posições mais
impactantes.
As propostas da Plataforma abrangem cinco aspectos: promoção da
Democracia Direta; construção de instrumentos de Democracia
Representativa; mudanças radicais no Sistema de Representação;
democratização da mídia; democratização do Judiciário. Vamos
apresntá-las, ponto por ponto. Começaremos pela Democracia Direta.
Há uma enorme lacuna aqui – e ela diz muito sobre o sequestro da
democracia. Em 1988, sob intensa mobilização popular, a Constituição
estabeleceu, já em seu artigo 1º: “todo o poder emana do povo, que o
exerce por meio de seus representantes ou diretamente”. Mas os deputados
e senadores demoraram dez anos para regulamentar este princípio. E
quando o fizeram, em 1998, por meio da Lei 9709, bloquearam de maneira grotesca os três instrumentos mais clássicos de Democracia Direta.
Segundo a Lei 9709, plebiscitos e referendos só podem ser convocados…
pelo próprio Congresso Nacional. Ou seja, a democracia direta, prevista
expressamente na Constituição, foi submetida à vontade dos deputados e
senadores. E a própria proposição de leis de iniciativa popular exige
uma quantidade fantástica de apoios. 1% do eleitorado, ou 1,4 milhão de
eleitores. É mais do que o dobro do que se exige para formar um novo
partido político. E isso para propor uma única lei.
A Plataforma pela Reforma Política defende a facilitação dos
plebiscitos e referendos. Quer, aliás, torná-los obrigatórios, sempre
que se fizer uma emenda à Constituição. Se este princípio estivesse em
vigor, a contra-reforma da Previdência e a PEC-241-55, que congelou por
vinte anos os gastos públicos, jamais seriam aprovadas.
Na reunião da semana passada, discutiu-se, além disso, propor o uso
maciço da internet para abrir espaço à democria direta. Se os cidadãos
movimentam sua conta bancária, compram uma casa, reservam passagens para
outro lado do planeta online, por que não poderiam apoiar, também via
internet, um projeto de lei de iniciativa popular?
A Democracia Direta, bloqueada pelos deputados e senadores mas
perfeitamente viável hoje, foi apenas um dos temas debatidos no encontro
da Plataforma pela Reforma Política. No próximo programa, veremos as
proposições para criar mecanismos de Democracia Participativa.
Em seu conjunto, a Plataforma sugere uma reflexão importantíssima às
vésperas da greve geral. Não nos iludamos: a simples eleição de um
presidente mudará muito pouco. Mas ao mesmo tempo, não nos conformemos. A
mobilização desta sexta expressa o esgotamento de nosso sistema
político. É hora de reconstruí-lo, em bases radicalmente nova.
Fonte Outras Palavras
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