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O PERIGO DE SUBESTIMAR A HISTÓRIA
Quem
hoje ri, pode chorar. Quem é herói, pode virar vilão. Os donos do golpe simplesmente não oferecem nenhuma saída à população
que não seja a de abrir mão de direitos, caminhar rumo à miséria e viver
oprimida. A história caminha
por vias tortas e instáveis Num país rico e desigual, os golpistas empurram o povo para um lugar
onde a resposta mais justa e previsível é o uso da violência contra quem
o violenta. Apostar continuamente na apatia de quem assiste, com fome
de justiça, ao banquete dos poderosos, é uma aposta arriscada demais
para um país que dispõe de tantos recursos para distribuir melhor a
renda e evitar o caos.
PorCelso Vicenzi
O povo escreve a história com as suas próprias pernas. As lideranças,
quando surgem, são apenas a expressão visível da vontade popular. O
tempo em que mudanças profundas ocorrem não é, necessariamente, o tempo
que nos é dado viver. Retrocessos e avanços estão continuamente sendo
produzidos em cada pedaço de chão do planeta. E antes de termos nascido e
depois que viermos a morrer, fatos memoráveis aconteceram e acontecerão
em muitas e imprevisíveis direções.
Sei pouco, mas o pouco que
sei basta para compreender que quando as pessoas que comandam as
instituições de um país e que deveriam garantir a estabilidade social,
econômica e política, se dedicam a usá-las unicamente em benefício
próprio e de grupos, para subjugar ainda mais quem pouco tem, estão
assinando a sua própria sentença, pondo a própria cabeça a prêmio. Com
sorte, morrerão antes. Mas pode ser que ainda em vida compartilhem
situações ocorridas em países muito próximos e outros mais distantes,
onde poderosos acabaram presos e até mesmo condenados à prisão perpétua
(como aconteceu na América Latina), sem falar naqueles que levaram
ex-dirigentes à pena de morte. Não estou dizendo que isso acontecerá no
Brasil (que não tem pena de morte, a não ser para pretos e pobres,
executados neste país todos os dias). Faço apenas o registro que já
aconteceu, em vários países. Mas é próprio de quem tem o poder, achar
que nunca corre riscos.
No entanto, quanto mais poderoso alguém
se sente, a ponto de fazer escárnio da maioria da população, como agora
assistimos cotidianamente com parlamentares, juízes, procuradores,
empresários e tantos outros que tripudiam sobre a desgraça de quem quase
nada ou pouco tem, mais encorajam a revolta de quem tem sede de
justiça. E desta vez, porque queimaram as pontes e destruíram os pactos,
a alternativa de reconstrução pode não ser pela via da conciliação,
como outrora aconteceu, em tantos momentos da história do país, desde a
Independência, anunciada por um nobre português (ora pois!), passando
pela Proclamação da República, redemocratização, anistia a torturadores e
tantos outros episódios em que o povo, ou não participou ou não foi
ouvido.
Mas, embora encobertas pela história oficial, não faltam
revoltas e movimentos de insurreição, como as guerras de Canudos, do
Contestado, a Sabinada, a Balaiada, a Revolta da Chibata, Insurreição
Pernambucana, Revolução Farroupilha e segue uma lista que não é pequena.
Apesar
de todas essas e outras insurgências que desafiaram os poderes
estabelecidos, é fato que temos uma história marcada por (falsos)
consensos, geralmente à revelia do povo, negociada pelos donos do “andar
de cima”. Entre a paz e a convulsão social, difícil prever
desdobramentos. Cada povo constrói a sua história. Mas nada garante que
essa “paz” – tantas vezes sangrenta – seja eternamente duradoura. Melhor
não abusar.
Por isso, quem hoje ri, pode chorar. Quem é herói,
pode virar vilão. A história caminha por vias tortas e instáveis. Quem
pensa que pisa chão firme, esquece que o fundo da terra é feito de lava
incandescente, sempre prestes a explodir. Em pouco tempo, sociedades
podem dar vazão a forças incontroláveis. Às vezes, cortando cabeças de
reis e rainhas, nobres e plebeus, aqui e acolá. Ou levando países a
guerras civis e outras experiências traumáticas, com manifestações de
ódio. Onde havia paz e serenidade, pode sobrevir hostilidade e pânico.
Do céu ao inferno, é mais perto do que muitos imaginam.
Abrir os
livros de História é mergulhar, não raro, em períodos de grandes
horrores. Já seria o suficiente para ninguém abusar da paciência de quem
é continuamente violentado em seus direitos. Muito menos subestimar o
destemor e a coragem, como já nos ensinou há 2.500 o general Sun Tzu (A
Arte da Guerra) do inimigo a quem não é oferecida uma saída, porque
nessa situação, “ele lutará até a morte” com uma bravura e uma potência
que talvez nem soubesse de que é capaz.
E os donos do golpe
simplesmente não oferecem nenhuma saída à população que não seja a de
abrir mão de direitos, caminhar rumo à miséria e viver oprimida. Num
país rico e desigual, os golpistas empurram o povo para um lugar onde a
resposta mais justa e previsível é o uso da violência contra quem o
violenta. Apostar continuamente na apatia de quem assiste, com fome de
justiça, ao banquete dos poderosos, é uma aposta arriscada demais para
um país que dispõe de tantos recursos para distribuir melhor a renda e
evitar o caos.
Celso Vicenzi é jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Cataria e escreve em seu blog.