O colonialismo insidioso é gasoso e evanescente, tão invasivo quanto evasivo, em suma, ardiloso. Mas nem por isso engana ou minora o sofrimento de quem é dele vítima na sua vida quotidiana.
É hora de declarar incumprida uma das grandes promessas modernas. O
homem branco jamais aceitou a igualdade. Novas lutas precisarão impô-la
Outras Palavras
Por Boaventura de Sousa Santos
Para Marielle Franco, in memoriam
O termo alemão Zeitgeist
é hoje usado em diferentes línguas para designar o clima cultural,
intelectual e moral de uma dada época, literalmente, o espírito do
tempo, o conjunto de crenças e de ideias que compõem a especificidade de
um período histórico. Na Idade Moderna, dada a persistência da ideia do
progresso, uma das maiores dificuldades em captar o espírito de uma
dada época reside em identificar as continuidades com épocas anteriores,
quase sempre disfarçadas de descontinuidades, inovações, rupturas. E
para complicar ainda mais a análise, o que permanece de períodos
anteriores é sempre metamorfoseado em algo que simultaneamente o
denuncia e dissimula e, por isso, permanece sempre como algo diferente
do que foi sem deixar de ser o mesmo. As categorias que usamos para
caracterizar uma dada época são demasiado toscas para captar esta
complexidade, porque elas próprias são parte do mesmo espírito do tempo
que supostamente devem caracterizar a partir de fora. Correm sempre o
risco de serem anacrônicas, pelo peso da inércia, ou utópicas, pela
leveza da antecipação.
Tenho
defendido que vivemos em sociedades capitalistas, coloniais e
patriarcais, por referência aos três principais modos de dominação da
era moderna: capitalismo, colonialismo e patriarcado ou, mais
precisamente, hetero-patriarcado. Nenhuma destas categorias é tão
controversa, quer entre os movimentos sociais, quer na comunidade
científica, quanto a de colonialismo. Fomos todos tão socializados na
ideia de que as lutas de libertação anti-colonial do século XX puseram
fim ao colonialismo que é quase uma heresia pensar que afinal o
colonialismo não acabou, apenas mudou de forma ou de roupagem, e que a
nossa dificuldade é sobretudo a de nomear adequadamente este complexo
processo de continuidade e mudança. É certo que os analistas e os
políticos mais avisados dos últimos cinquenta anos tiveram a percepção
aguda desta complexidade, mas as suas vozes não foram suficientemente
fortes para pôr em causa a ideia convencional de que o colonialismo
propriamente dito acabara, com exceção de alguns poucos casos, os mais
dramáticos sendo possivelmente o Sahara Ocidental, a colônia
hispano-marroquina que continua subjugando o povo saharaui e a ocupação
da Palestina por Israel. Entre essas vozes, é de salientar a do grande
sociólogo mexicano Pablo Gonzalez Casanova com o seu conceito de
colonialismo interno para caraterizar a permanência de estruturas de
poder colonial nas sociedades que emergiram no século XIX das lutas de
independência das antigas colônias americanas da Espanha. E também a voz
do grande líder africano, Kwame Nkrumah, primeiro presidente da
República do Gana, com o seu conceito de neocolonialismo para
caracterizar o domínio que as antigas potências coloniais continuavam a
deter sobre as suas antigas colônias, agora países supostamente
independentes.
Uma reflexão mais aprofundada dos últimos 60 anos
leva-me a concluir que o que quase terminou com os processos de
independência do século XX foi uma forma específica de colonialismo, e
não o colonialismo como modo de dominação. A forma que quase terminou
foi o que se pode designar por colonialismo histórico caracterizado pela
ocupação territorial estrangeira. Mas o modo de dominação colonial
continuou sob outras formas e, se as considerarmos como tal, o
colonialismo está talvez hoje tão vigente e violento como no passado. Para justificar esta asserção é necessário especificar em que consiste o
colonialismo enquanto modo de dominação. Colonialismo é todo o modo de
dominação assente na degradação ontológica das populações dominadas por
razões etno-raciais. Às populações e aos corpos racializados não é
reconhecida a mesma dignidade humana que é atribuída aos que os dominam.
São populações e corpos que, apesar de todas as declarações universais
dos direitos humanos, são existencialmente considerados sub-humanos,
seres inferiores na escala do ser, e as suas vidas pouco valor têm para
quem os oprime, sendo, por isso, facilmente descartáveis. Foram
inicialmente concebidos como parte da paisagem das terras “descobertas”
pelos conquistadores, terras que, apesar de habitadas por populações
indígenas desde tempos imemoriais, foram consideradas como terras de
ninguém, terra nullius. Foram também considerados como objetos
de propriedade individual, de que é prova histórica a escravatura. E
continuam hoje a ser populações e corpos vítimas do racismo, da
xenofobia, da expulsão das suas terras para abrir caminho aos
megaprojetos mineiros e agroindustriais e à especulação imobiliária, da
violência policial e das milícias paramilitares, do tráfico de pessoas e
de órgãos, do trabalho escravo designado eufemisticamente como
“trabalho análogo ao trabalho escravo” para satisfazer a hipocrisia
bem-pensante das relações internacionais, da conversão das suas
comunidades de rios cristalinos e florestas idílicas em infernos tóxicos
de degradação ambiental. Vivem em zonas de sacrifício, a cada momento
em risco de se transformarem em zonas de não-ser.
As novas formas
de colonialismo são mais insidiosas porque ocorrem no âmago de relações
sociais, econômicas e políticas dominadas pelas ideologias do
anti-racismo, dos direitos humanos universais, da igualdade de todos
perante a lei, da não-discriminação, da igual dignidade dos filhos e
filhas de qualquer deus ou deusa. O colonialismo insidioso é gasoso e
evanescente, tão invasivo quanto evasivo, em suma, ardiloso. Mas nem por
isso engana ou minora o sofrimento de quem é dele vítima na sua vida
quotidiana. Floresce em apartheids sociais não institucionais,
mesmo que sistemáticos. Tanto ocorre nas ruas como nas casas, nas
prisões e nas universidades como nos supermercados e nos batalhões de
polícia. Disfarça-se facilmente de outras formas de dominação tais como
diferenças de classe e de sexo ou sexualidade mesmo sendo sempre um
componente constitutivo delas. Verdadeiramente só é captável em close-ups,
instantâneos do dia-a-dia. Em alguns deles, o colonialismo insidioso
surge como saudade do colonialismo, como se fosse uma espécie em
extinção que tem de ser protegida e multiplicada. Eis alguns desses
instantâneos.
Primeiro instantâneo. Um dos últimos números de 2017 da respeitável revista científica Third World Quarterly,
dedicada aos estudos pós-coloniais, incluía um artigo de autoria de
Bruce Gilley, da Universidade Estadual de Portland, intitulado “Em
defesa do colonialismo”. Eis o resumo do artigo: “Nos últimos cem anos, o
colonialismo ocidental tem sido muito maltratado. É chegada a hora de
contestar esta ortodoxia. Considerando realisticamente os respectivos
conceitos, o colonialismo ocidental foi, em regra, tanto objetivamente
benéfico como subjetivamente legítimo na maior parte dos lugares onde
ocorreu. Em geral, os países que abraçaram a sua herança colonial
tiveram mais êxito do que aqueles que a desprezaram. A ideologia
anti-colonial impôs graves prejuízos aos povos a ela sujeitos e continua
a impedir, em muitos lugares, um desenvolvimento sustentado e um
encontro produtivo com a modernidade. Há três formas de estados fracos e
frágeis recuperarem hoje o colonialismo: reclamando modos coloniais de
governação; recolonizando certas áreas; e criando novas colônias
ocidentais”. O artigo causou uma indignação geral e quinze membros do
conselho editorial da revista demitiram-se. A pressão foi tão grande que
o autor acabou por retirar o artigo da versão eletrônica da revista,
mas permaneceu na versão já impressa. Foi um sinal dos tempos? Afinal, o
artigo fora sujeito a revisão anônima por pares. A controvérsia mostrou
que a defesa do colonialismo estava longe de ser um ato isolado de um
autor tresloucado.
Segundo instantâneo. O Wall Street Journal de 22 de março passado publicou uma reportagem
intitulada “Procura de sêmen americano disparou no Brasil”. Segundo a
jornalista, a importação de sêmen americano por mulheres solteiras e
casais de lésbicas brasileiras ricas aumentou extraordinariamente nos
últimos sete anos e os perfis dos doadores selecionados mostram a
preferência por crianças brancas e com olhos azuis. E acrescenta: “A
preferência por dadores brancos reflete uma persistente preocupação com a
raça num país em que a classe social e a cor da pele coincidem com
grande rigor. Mais de 50% dos brasileiros são negros ou mestiços, uma
herança que resultou de o Brasil ter importado dez vezes mais escravos
africanos do que os Estados Unidos; foi o último país a abolir a
escravatura, em 1888. Os descendentes de colonos e imigrantes brancos –
muitos dos quais foram atraídos para o Brasil no final do século XIX e
princípio do século XX quando as elites no governo procuraram
explicitamente ‘branquear’ a população – controlam a maior parte do
poder político e da riqueza do país. Numa sociedade tão racialmente
dividida, ter descendência de pele clara é visto muitas vezes como um
modo de providenciar às crianças melhores perspectivas, seja um salário
mais elevado ou um tratamento policial mais justo”.
Terceiro instantâneo. Em 24 de março o mais influente jornal da Africa do Sul, Mail & Guardian,
publicou uma reportagem intitulada “Genocídio branco: como a grande
mentira se espalhou para os Estados Unidos e outros países”. Segundo o
jornalista, “O Suidlanders, um grupo sul-africano de extrema direita,
tem estabelecido contato com outros grupos extremistas nos Estados
Unidos e na Austrália, fabricando uma teoria da conspiração sobre
genocídio branco com o objectivo de conseguir apoio internacional para
sul-africanos brancos. O grupo, que se auto-descreve como ‘uma
iniciativa-plano de emergência’ para preparar uma minoria sul-africana
de cristãos protestantes para uma suposta revolução violenta, tem-se
relacionado com vários grupos extremistas (alt-right) e seus influentes
contatos midiáticos nos Estados Unidos para erguer uma oposição global à
alegada perseguição a brancos na África do Sul… Na semana passada, o,
ministro australiano dos Assuntos Internos, disse ao Daily Telegraph
que estava considerando a concessão de vistos rápidos para agricultores
sul-africanos brancos, os quais, alegava o ministro, precisavam de
‘fugir de circunstâncias atrozes’ para ‘um país civilizado’. Segundo o
ministro, os ditos agricultores ‘merecem atenção especial’ por causa de
ocupação de terras e violência … Tem também sido dada mais atenção a
agricultores sul-africanos brancos na Europa, onde políticos da extrema
direita com contatos diretos com a extrema direita (alt-right) nos
Estados Unidos têm solicitado ao Parlamento Europeu que intervenha na
África do Sul. Agentes políticos contra os refugiados no Reino Unido
estão igualmente ligados à causa”.
A grande armadilha do colonialismo insidioso é dar a impressão de um regresso, quando o que regressa nunca deixou de estar.
Fonte Outras Palavras