Os brasileiros aprenderam, em 2017, ainda que com muito atraso, que raça é um tema incontornável da nossa agenda cidadã. E que raça continua a ser um plus perverso nos censos oficiais, que mostram como os negros morrem em maior número e mais jovens, têm menos acesso à educação e à saúde, têm os piores postos de trabalho e salários.
Diário do Centro do Mundo
POR CLAYTON NETZ
Última nação a libertar seus
escravos, em 1888 (Cuba foi a penúltima, em 1886), o Brasil foi quem
mais importou negros africanos, entre meados do século 16 e meados do
19. Pesquisas recentes de um programa das universidades Emory, de
Atlanta, nos Estados Unidos, e Hull, de Kingston, na
Inglaterra, refizeram as contas e constataram que chegaram ao país 5,8
milhões de escravos, cerca de 60% dos 10 milhões trazidos para as
Américas.
Esse
total, representa quase dez vezes mais do que os 597 mil africanos
traficados para os Estados Unidos, que aboliram o cativeiro 23 anos
antes do Brasil, em 1865, no bojo de uma sangrenta Guerra Civil.
À época da Lei Áurea, assinada pela
princesa Isabel, estima-se que apenas 5% dos negros que se espalhavam
pelas províncias brasileiras eram escravos. O censo de 1872 apontava uma
proporção maior, 15,2 % dos 10 milhões de habitantes do país. Os
restantes estavam entregues à própria sorte, vivendo de bicos, exercendo
funções subalternas de pintores, pedreiros e carregadores de carga,
entre outros.
Com a assinatura da Lei, no dia 13 de
maio, a situação não mudou. Ninguém procurou prepará-los para a
liberdade, seja através da educação, seja com a oferta de preparação
profissional ou mesmo distribuindo terras para cultivo. Em
vez disso, o primeiro governo da República, proclamada um ano depois,
em 1889, preferiu investir na atração de imigrantes europeus para suprir
a ausência dos negros na lavoura, como mão de obra ou oferecendo-lhes
pequenas propriedades.
Ou seja, o Brasil resolveu estimular o
branqueamento da população brasileira, acelerado pelo ingresso dos
estrangeiros, mas principalmente pela miscigenação. Como demonstra a
antropóloga, historiadora e escritora Lilia Moritz Schwarcz, autora do
monumental “Lima Barreto – Triste Visionário”, sobre o escritor
negro Afonso Henriques de Lima Barreto, não faltaram estudos científicos
defendendo a teoria do branqueamento.
O principal deles era de autoria
do diretor do Museu Nacional, o médico João Batista de Lacerda, que
financiado pelo presidente da República, o marechal Hermes da Fonseca,
participou do Congresso Universal das Raças, realizado em Londres, em
1911. “De acordo com Lacerda, a mestiçagem no Brasil seria (apenas)
transitória e benéfica, não deixando no futuro rastros ou pistas”,
escreveu Lilia.
“Ele comparava o Brasil com os Estados
Unidos: se por lá grassava um sistema escravocrata violento, no Brasil o
processo teria sido bem mais “pacífico.” Baseado nas estatísticas, que
mostravam um declínio da população negra entre os censos de 1872 e 1890,
Lacerda sustentava que o embranquecimento da população “era um fato
consumado” e arriscava que em um século, após três gerações, seríamos um
país de brancos.
O que se viu não foi o que queria o
governo: mais de um século depois das previsões de Lacerda, não apenas o
Brasil não embranqueceu como está mais negro do que nunca. Segundo o
IBGE, nada menos de 54% dos 207,7 milhões de brasileiros declaram-se
pretos ou pardos, conformando, portanto, a maioria da população
brasileira. Em 2004, eram 48%. Com 112 milhões de pessoas, o Brasil
abriga a segunda maior população negra do mundo (só perde para a
Nigéria).
Separado, esse contingente formaria o 11º
país do mundo em número de habitantes, com uma capacidade de consumo
avaliada em R$ 1,6 trilhão, o equivalente a US$ 500 bilhões, de acordo
com uma pesquisa do Instituto Locomotiva para a Universidade Zumbi dos
Palmares. “É um mercado com grande potencial consumidor, equivalente ao
17º maior do mundo, para o qual as empresas deveriam olhar”, diz Renato
Meirelles, presidente do Locomotiva. “Eles estariam no G-20 mundial.”
Segundo Meirelles, esse número poderia
ser ainda mais relevante: por conta da desigualdade salarial entre
negros e brancos, deixam de ser injetados nada menos de R$ 808 bilhões,
anualmente, na economia brasileira. “Se não for por justiça social, que
seja por inteligência: a desigualdade racial atrapalha a economia”, diz.
A pesquisa do Instituto Locomotiva desmistifica, também, uma verdade estabelecida entre os brasileiros: o de que a desigualdade racial está vinculada à desigualdade educacional.
Parcialmente é verdade, pois, na maior
parte dos casos, as diferenças educacionais entre brancos e negros são
realmente gritantes, no Brasil. No entanto, mesmo quando se trata de
pessoas com grau de escolaridade e de experiência semelhantes, os negros
recebem um terço a menos do que seus concorrentes brancos. “Sou branco,
paulistano, curso superior, 40 anos. Pelo simples fato de ser branco
ganho 31% a mais do que um homem negro, paulistano, 40 anos, com curso
superior”, enfatiza Meirelles no estudo.
Lilia Moritz Schwarcz lembra que no
período pós abolição corria pelas ruas do Rio de Janeiro um provérbio,
segundo o qual se “a liberdade era negra, já a igualdade continuava
branca”, numa referência à Lei Áurea, que aboliu formalmente a
escravidão no Brasil.
“Mas o fez de forma muito conservadora:
sem pensar em ressarcimentos ou na futura inserção das populações de
libertos que ficaram submetidas a séculos de escravidão.”, afirma. Otimista,
ela acredita que essa situação tende a mudar. Para ela, o ano de 2017
vai ficar na história como aquele em que a questão racial estourou no
País todo, nos mais diversos setores e deixou mais claro para os
brasileiros a realidade dura da discriminação e do racismo histórico e
estrutural vigentes.
Um dos exemplos mencionados por Lilia em
artigo para o jornal O Estado de S. Paulo é o fato de que Lima Barreto,
uma espécie de escritor incômodo para as elites brancas, com sua
literatura irreverente e militante, tenha sido homenageado na Feira Literária Internacional de Paraty (Flip).
O outro é o sucesso do ator Lázaro Ramos, que lançou sua biografia na
Flip. “Lázaro, que morava num lugar afastado na Bahia, precisou ir para a
cidade grande e assim “descobrir” sua raça”, afirma. “Chegou na Flip
como estrela global e saiu de lá um pensador e escritor consagrado.”
Para a escritora, os brasileiros
aprenderam, em 2017, ainda que com muito atraso, que raça é um tema
incontornável da nossa agenda cidadã. E que raça continua a ser um plus
perverso nos censos oficiais, que mostram como os negros morrem em maior
número e mais jovens, têm menos acesso à educação e à saúde, têm os
piores postos de trabalho e salários.
“A gravidade do assunto mostra, pois,
como ele não é de interesse apenas das populações diretamente afetadas
pela discriminação – diz respeito a cada um de nós”, afirma Lilia. Para
além das boas intenções, o fato é que embora sejam maioria da população,
os negros brasileiros são tratados como minoria, não sendo prioritários
nas políticas públicas, nas empresas e no que se refere à igualdade de
direitos. “Padecemos de uma grande miopia social, o Brasil não sabe o
que fazer com sua população negra”, diz Adriana Barbosa, da Feira Preta.
“É algo que não pode seguir sendo mantido debaixo do tapete.”
Aos números, com dados do estudo do Locomotiva, do Instituto Ethos e do IBGE:
- A proporção de brancos entre os 10% mais ricos da população é de 70%, contra 30% dos negros; entre os 10% mais pobres, os negros chegam a 74% e os brancos 26%
- A fatia de negros nos cargos executivos mais elevados nas empresas é de 4,7%; os demais 95,3% são ocupados por brancos
- Em 2015, a média salarial dos brancos era de R$ 1 379, contra R$ 775 dos negros
- No ritmo atual, a equiparação do rendimento de negros e brancos só será alcançada em 2089, dois séculos depois da Lei Áurea, segundo a representação no Brasil da Oxfam, entidade britânica de defesa dos Direitos Humanos
- Pretos e pardos constituíam 63,7% (8,3 milhões) dos 13 milhões de brasileiros que procuravam emprego em 2017. A taxa de desemprego entre eles alcançava 14,6%, contra 9,9% dos trabalhadores brancos. A taxa nacional era de 12,4%
- 18% dos homens brancos acima de 25 anos têm curso superior, contra 6% dos negros; entre as mulheres, a proporção é de 21% para as brancas e 9% para as negras
- Os negros formam 16,8% dos analfabetos entre a população adulta, contra 12,5% dos brancos
- 93% dos jovens negros não frequentaram cursos de idiomas; 60% nunca receberam qualificação
- Em média, os brancos têm 7,5 anos de escolaridade; os negros, 6,2 anos
- No ensino superior, os brancos representam 63% dos matriculados, contra 27%
- 93% dos jovens negros não frequentaram cursos de idiomas; 60% nunca receberam qualificação profissional
- Para cada 100 mil habitantes entre 15 e 29 anos, são assassinados 82 negros, contra 30 brancos
- Na população carcerária, 67% dos presos são negros; os brancos, 33%
- 93% brasileiros acham que há racismo no Brasil, mas apenas 9% reconhecem terem sido racistas
- 17,4 milhões de brasileiros não gostariam de ter um chefe negro
- 7,9 milhões acham ruim ser atendidos por médicos negros
- 13, 3 milhões não querem que filhos casem com negros
É preciso desenhar?