Conceitualmente, a anarquia judicial se define pela quebra da jurisprudência; pela aplicação de regras jurídicas diferentes para cada caso e para casos semelhantes; pelo estabelecimento do juízo, não segundo os fatos, mas segundo a pessoa do réu; pelo uso da vontade arbitrária do juiz na sentença em substituição da lei. O motim judicial efetivado no último domingo se caracteriza pela desobediência explícita por parte de Moro, de Gebran e de setores da PF de Curitiba à ordem judicial legítima, naturalmente competente, emitida pelo desembargador Favreto
Por Aldo Fornazieri
Professor da Escola de
Sociologia e Política (FESPSP).
Na semana passada publicamos o artigo "A Anarquia Judicial e o Brasil na Noite Trevosa".
Bastou apenas uma semana para que não só se confirmasse a existência da
anarquia judicial, mas para que, também, se revelasse a sua gravidade:
agora a anarquia se transformou em motim, em desobediência aberta, em
quebra da hierarquia - ações perpetradas pelo juiz Sérgio Moro, pelo
desembargador João Gebran Neto e por setores do Ministério Público e da
Polícia Federal ao não cumprirem ordem de soltura do presidente Lula,
determinada pelo desembargador Rogério Favreto. O próprio presidente do
TRF4, Thompson Flores, participou desse motim ao sobrepor-se
arbitrariamente, cassando o Habeas Corpus concedido a Lula.
Antes de tudo, é preciso saudar o desembargador Favreto pela coragem
de enfrentar os conspiradores do Judiciário e os interesses golpistas
que querem manter Lula preso injustamente e de impedi-lo de ser
candidato à presidência da República. Nesse momento em que o país está
mergulhado nos tormentos do desengano, em que a Constituição está sendo
rasgada por aqueles que deveriam defendê-la e guardá-la, em que a lei
está sendo vilipendiada por juízes e desembargadores, a coragem cívica
de Favreto deve iluminar os políticos, outros juízes e desembargadores
corretos que põem o dever constitucional e a sacralidade da função como
metros de suas condutas. Nesta noite trevosa do Brasil, somente a
coragem e o destemor dos democratas, dos constitucionalistas e dos
civilistas podem barrar o aprofundamento do caos jurídico e
institucional instalado pelo golpe judicial-parlamentar.
Conceitualmente, a anarquia judicial se define pela quebra da
jurisprudência; pela aplicação de regras jurídicas diferentes para cada
caso e para casos semelhantes; pelo estabelecimento do juízo, não
segundo os fatos, mas segundo a pessoa do réu; pelo uso da vontade
arbitrária do juiz na sentença em substituição da lei. O motim judicial
efetivado no último domingo se caracteriza pela desobediência explícita
por parte de Moro, de Gebran e de setores da PF de Curitiba à ordem
judicial legítima, naturalmente competente, emitida pelo desembargador
Favreto. Este motim se reveste de maior gravidade por ter havido uma
trama, uma conspiração, entre membros da PF, do MPF e do Judiciário para
descumprir a ordem e manter Lula preso. Se no juízo de Moro, de Gebran e
da PF a decisão de Favreto era equivocada, cabia cumpri-la para depois
recorrer às instâncias competentes. Mas preferiram a insubordinação ao
caminho da lei.
O motim e a conspirata se revestem da mais alta gravidade porque
encaminham a sociedade para a desobediência civil, para o dilaceramento
moral, para o agravando o caos instalado, para a desordem e a violência.
O principal promotor desse vilipêndio do ordenamento constitucional,
legal e moral do país é o próprio poder Judiciário, secundado por um
governo falido, desmoralizado, corrupto e indigno. Os tiranetes de toga,
hoje, decidem ao sabor do arbítrio de cada juiz, ao sabor da violação
das hierarquias, das normas, da lei e da Constituição.
Não há mais senso de autoridade legítima no país, pois a
desmoralização dos poderes e sua falência são coisas amplas e percebidas
por todos. Como exigir que o cidadão comum cumpra a lei, se os juízes
são os primeiros a pisoteá-la? Como o Judiciário quer ser respeitado, se
não respeita a Constituição, viceja através de privilégios criminosos e
inescrupulosos e se afunda na lama da pior forma de corrupção possível
que é a corrupção amparada pelo manto de uma falsa legalidade? Como
respeitar um Judiciário que, além de corrompido por privilégios
escandalosos, é corrompido no princípio moral por ministrar uma Justiça
elitista, enviesada, contra os pobres e de proteção aos ricos? Quem pode
acreditar no Judiciário, presidido por Carmen Lucia, que prega a
impessoalidade da Justiça e agiu descaradamente para salvar Aécio Neves?
Quem pode acreditar no combate à corrupção quando o Judiciário é
corrupto e foi um dos artífices do golpe para colocar no governo uma
quadrilha que vem destruindo o país?
A luta nos tribunais e a luta nas ruas
Sim, mesmo que a ordem legal e constitucional esteja destruída, é
preciso percorrer todos os caminhos legais possíveis para tentar
conquistar a liberdade de Lula. Esta também é uma forma de luta política
necessária. Mas acreditar que Lula será liberto por esse Judiciário é
uma ilusão. Somente a pressão das ruas pode libertá-lo.
Quando se fala em pressão das ruas é preciso entender que os
ativistas, os movimentos sociais e os setores populares não se
mobilizarão espontaneamente. Em regra, se mobilizam quando há uma
liderança legítima, reconhecida, autêntica e competente que chama o povo
para a mobilização. Para que haja grandes manifestações é preciso que a
mobilização seja persistente, podendo começar pequena, mas crescendo
com o tempo.
Agora, com o motim que impediu a liberdade de Lula, oferece-se outra
oportunidade para que os movimentos sociais e, particularmente o PT,
organizem uma escalada de manifestações variadas, grandes e pequenas,
para exigir a liberdade e a candidatura de Lula. O tempo e a história
cobram dos atuais líderes populares, sindicais e partidários atitudes de
coragem e de desprendimento como as praticadas pelo desembargador
Favreto. Esses líderes, os partidos e os movimentos sociais terão que
escolher como serão julgados pelo tempo e pela história. Não há mais
espaço e nem tempo para protelações.
Quem tem força, liderança, organizações, partidos e movimentos para
convocar, precisam convocar. Caso contrário, nós todos, que estamos
vivos neste momento, trilharemos os caminhos do amargor e do desengano
até o fim dos nossos dias, pois novas derrotas nos aguardarão nas dobras
dos meses vindouros. É possível perceber que a militância quer lutar.
Mas esta militância precisa de líderes virtuosos, corajosos, firmes, que
disseminem confiança no seu comando. As esquerdas e os progressistas,
se não conseguem se unir eleitoralmente, precisam se unificar e caminhar
juntos na frente democrática e contra o golpe. Uma das questões
essenciais da luta democrática passa pela liberdade e pela garantia da
candidatura de Lula. Parece que há uma compreensão generalizada a esse
respeito. O que falta é transformar essa compreensão, essa consciência,
essa ânsia, em mobilização, organização e força.
Não há incompatibilidade entre eleições e mobilização. Pelo
contrário, a mobilização pela democracia e pela liberdade de Lula é o
caminho que pode potencializar as candidaturas progressistas e de
esquerda. O processo eleitoral só poderá trazer esperanças se for
aquecido pela mobilização. Caso contrário, as eleições podem se tornar
sepulcrais e serão uma estrada de passagem do desalento, pois a
esperança continuará presa nas masmorras e a ideia de Lula não se
tornará realidade.
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
Fonte GGN