O juiz Sergio Moro, que disse que a corrupção destinada a caixa 2 de campanha eleitoral é ainda mais perniciosa do que a corrupção destinada ao enriquecimento pessoal porque constitui um ataque direto à democracia, acaba de aceitar o convite de Bolsonaro para ser o seu ministro da justiça. Não é preciso dizer mais.
Imagem: Alex Andreev
Por Leda Paulani
A eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da república do Brasil
deixa o mundo estarrecido. Seu estilo autoritário e agressivo, sua
apologia à tortura, suas continuadas ofensas a determinados grupos ao
longo de seus quase 30 anos de vida parlamentar (mulheres, negros,
LGBTQs) e seu desprezo aos princípios democráticos são tão
impressionantes que mesmo para um nome de destaque mundial da
extrema-direita, como a francesa Marie Le Pen, ele causa repulsa: “suas
declarações são inaceitáveis”, ela diz. Não por acaso, só Trump parece
relevar tudo isso e louva, pelo Twitter, a conversa alvissareira que
teve, em 30 de outubro, com o presidente eleito.
Considerando que o Brasil não é um país pequeno e sem importância no
cenário mundial, bem ao contrário, e considerando, portanto, que essa
eleição significa o voto de mais de 57 milhões de pessoas em alguém como
Bolsonaro (ainda que esse contingente represente apenas 39,2% dos
eleitores do país), cabe uma reflexão profunda e que mobilize todo o
arsenal teórico à disposição para que se possa identificar as causas
desse terremoto anticivilizatório. Evidentemente não é possível fazê-la
no curto espaço de um artigo e, com certeza, independentemente do que
possa vir a acontecer a partir de agora, esse resultado será discutido e
estudado, analisado e dissecado por décadas a fio. É possível, contudo,
antecipar alguns elementos, que podem jogar alguma luz em episódio tão
sombrio.
Um fenômeno dessa magnitude nunca é isolado, de modo que não pode ser
explicado mobilizando-se apenas variáveis relativas às questões sociais
e políticas internas ao país. Além disso, o mundo é hoje cada vez mais
integrado, seja por conta da forma que foi tomando o processo de
acumulação de capital desde o início dos anos 1980, num sistema
econômico que é hoje (depois da transformação capitalista da China)
verdadeiramente mundial, seja pelo estupendo desenvolvimento das assim
chamadas tecnologias de informação e comunicação (elemento, por
sinal, de extrema importância no resultado das eleições brasileiras).
Nosso primeiro olhar vai, portanto, para o cenário externo.
Depois de mais de três décadas de ascensão e difusão da cartilha e
das políticas neoliberais mundo afora (como se sabe, mesmo países
europeus geridos por longos períodos por partidos social democratas
acabaram por sucumbir a essas políticas – e o Brasil comandado pelo
Partido dos Trabalhadores tampouco foi diferente), o neoliberalismo
parece ter chegado num ponto de saturação e sem ter entregue aquilo que
prometera. No início dos anos 1980, as teorias da “repressão financeira”
alegavam que a estrutura institucional herdada do pós-segunda guerra
mundial – com seus controles, regras, tributos e quarentenas – era
deletéria para o desenvolvimento, e que a liberalização financeira, ao
tornar mais eficiente a alocação de capitais no globo, traria melhores
tempos para todos os países, potenciando o crescimento. O mesmo se dizia
da generalização da abertura comercial, pois que a economia mundial
viria a ser então uma harmônica aldeia global, em que todos os países,
beneficiados por suas vantagens comparativas mútuas, sairiam ganhando
materialmente.
Mas o resultado dessas políticas, três décadas depois, foi o aumento
da desigualdade (inclusive entre os países), o crescimento muito lento e
o surgimento de um desemprego que tem características estruturais. Tudo
isso piorou substantivamente com o advento da crise financeira
internacional de 2008-09, que não só tornou ainda mais indigestos os
resultados desse modelo, como, ao longo da última década e graças aos
meios segundo os quais se tentou equacionar os problemas, aprofundou as
contradições que estão em sua base. O voto antissistema é uma
consequência imediata dessa situação. É por aí que devem ser explicados,
a meu ver, a eleição de Trump nos Estados Unidos, o Brexit britânico e a
ascensão de partidos e políticos de extrema direita em todo o planeta
(Hungria, Polônia, Itália, Filipinas, Turquia, Bulgária, e agora,
infelizmente, também o Brasil – que já estava nesse caminho, deve-se
notar, desde o injustificável impeachment da presidenta Dilma em 2016 e o
início do governo Temer). O cenário é distópico.
Cabe no entanto perguntar: por que o sentimento antissistema vem
resultando majoritariamente numa aposta que parece antes contribuir para
o aprofundamento do modelo que é o responsável pela geração dessa
situação ruim e desguarnecida de perspectivas, do que no sentido
contrário? É verdade que o voto antissistema também flui para esse
último lado: Bernie Sanders quase se tornou candidato nas últimas
eleições presidenciais americanas, Obrador venceu no México, temos a
primavera socializante e alvissareira de Portugal e a surpreendente
vitória de Jeremy Corbin no tradicional e ainda poderosíssimo Labour
Party inglês. O predomínio, contudo, parece estar no primeiro movimento.
Por que?
A resposta a essa pergunta passa por caminhos que vão além das
variáveis e análises puramente econômicas e/ou políticas. É preciso aqui
mobilizar os filosófos, os pesquisadores de costumes, os antropólogos
urbanos, os sociólogos. Lendo Pierre Dardot e Christian Lavall, Nancy
Fraser, Dany-Robert Dufour, Wolfgang Streeck, Naomy Klein, André Gorz
dentre outros, vai sendo possível perceber que, na quadra histórica que
se inicia ao final dos anos 1970, não foram apenas as máximas e as
políticas neoliberais que ganharam proeminência: a vitória ideológica
foi também retumbante.
A insistente pregação neoliberal, quase nunca desacompanhada do mote there is no alternative,
foi transformando corações e mentes e instituindo, no ideário de boa
parte da população, sobretudo daqueles mais negativamente afetados pela
ascensão das políticas neoliberais, os valores da concorrência, do cada
um por si, do self made man, do mérito próprio, do empresário
de si mesmo, do cidadão como “cliente” do Estado. A cooperação, a
solidariedade, a importância do coletivo, do comum, da comunidade, foram
atirados nos desvãos da história junto com o muro de Berlim e os
“velhos” e empoeirados expedientes do Estado-Nação, da sociedade de
classes, das políticas universais, dos controles sociais/estatais
impostos à sanha acumulativa. Como lembra Nancy Fraser, mesmo as
chamadas pautas identitárias (mulheres, LGBTQs, minorias raciais) foram
inteiramente capturadas pelo espírito the winner takes all. Não
é de espantar que a reação às mazelas do mundo neoliberal, aprofundadas
pela crise de 2008-2009, se virem “contra” o sistema na direção errada e
acabem por fortalecê-lo, arrastando para os mesmos desvãos da história a
própria democracia.
No caso da vitória de Bolsonaro somaram-se a esse espírito de época
decorrente das quase quatro décadas de neoliberalismo, alguns elementos
domésticos não menos importantes para o resultado funesto produzido em
28 de outubro. Entre 2003 e meados de 2016 (até o impeachment de Dilma
Roussef) o Brasil foi governado pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Sob
esses governos, a economia brasileira, apesar de continuar submetida,
em boa parte do tempo, a uma política econômica de corte neoliberal, que
beneficiava continuamente a riqueza financeira, floresceu e conseguiu
resultados positivos impulsionados pela boa fase da economia mundial
pré-crise e pelo efeito multiplicador dos massivos programas de renda
compensatória (Bolsa Família), associados à substantiva elevação do
valor real do salário mínimo. Contra o sentido neoliberal, esses
governos também brecaram as privatizações e, a partir de 2006, deram
forte impulso aos investimentos públicos. No mesmo sentido, a política
externa “ativa e altiva” do país ao longo desse período recusou a ALCA,
fortaleceu os BRICS e o Mercosul e retirou o país do costumeiro
alinhamento direto com os interesses dos países centrais, EUA em
destaque.
Apesar do sucesso em termos de crescimento, nível de emprego e
redução da desigualdade, sem que os interesses dos muito ricos tivessem
sido afetados, as elites do país, de feição ainda extremamente
senhorial, nunca aceitaram o PT e sua maior liderança, o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva. O sentimento de “perda” de poder se instalou
e, no caso das classes médias altas, esse sentimento foi magnificado por
conta das políticas públicas dos governos do PT, que colocaram os mais
pobres em espaços antes exclusivos das elites: os aeroportos, as
universidades, os shoppings mais chiques.
Assim, desde pelo menos 2005, iniciou-se, com a inestimável
colaboração da grande mídia, uma implacável campanha de difamação e
demonização do Partido dos Trabalhadores e de suas principais
lideranças. Sempre ao abrigo da justa demanda social pelo combate à
corrupção, o sistema judiciário do país, com o beneplácito das elites
econômicas e dos partidos mais à direita, foi empreendendo uma “operação
de limpeza” seletiva, que passou a “julgar” e punir apenas os políticos
e partidos de esquerda, sobretudo do PT, enquanto os demais políticos e
partidos continuavam a ser tratados com a habitual camaradagem. É nesse
sentido que se deve entender a ação penal 470 (no processo conhecido
como “mensalão”), o infundado impeachment da presidenta Dilma, a
operação Lava-Jato, a juridicamente insustentável prisão de Lula no bojo
da citada operação, e seu impedimento de concorrer às eleições – sendo o
candidato de longe favorito e aparecendo com quase o dobro das
intenções de voto de Bolsonaro no início do processo eleitoral (e isto
mesmo com a determinação, duas vezes enviada ao governo brasileiro pelo
Comitê de Direitos Humanos da ONU, de que se garantisse a Lula o
exercício de todos os seus direitos políticos).
No corpo a corpo com os eleitores que as forças democráticas do país
empreenderam nas últimas semanas do segundo turno para tentar virar as
intenções de voto em Bolsonaro, um dos argumentos que mais se ouvia era
que o PT era sim o partido mais corrupto do país, porque afinal a maior
parte dos políticos condenados era ou havia sido ligada ao partido.
Mesmo argumentando que o PT, por qualquer critério que se escolha
(políticos cassados, processados etc.) está sempre em 9º ou 10º lugar,
aparecendo na frente dele a maior parte dos partidos de direita e
aqueles que estão hoje no comando do país, sob o governo Temer, os
eleitores continuavam desconfiados, preferindo continuar a crer na
imagem do partido em que foram sendo doutrinados a acreditar por mais de
uma década.
A crise econômica internacional, que atinge o Brasil a partir de
2011, ajudou a engrossar as críticas ao PT e a seus governos. Os
movimentos de maio de 2013, iniciados por uma juventude de esquerda
horizontalista e apartidária, tendo como foco reivindicações ligadas ao
transporte público, foram rapidamente capturados pela direita, com o
auxílio sempre determinante da grande mídia. A quarta vitória
consecutiva do PT nas eleições presidenciais de 2014, que ainda assim
acontece, detonou a operação conjugada do judiciário, grande mídia,
empresariado e partidos de direita para usurpar o poder delegado a Dilma
Rousseff pelo voto de mais de 54 milhões de brasileiros e pôr em marcha
uma agenda fortemente neoliberal, que havia sido rechaçada nas urnas
(privatizações, entrega do patrimônio natural do país, cortes nos
direitos dos trabalhadores).
Os interesses do grande capital internacional, com destaque para o
petróleo das camadas do pré-sal, também tiveram papel determinante. É
hoje de conhecimento público o fato de magistrados brasileiros como
Sérgio Moro, o todo poderoso juiz de primeira instância, comandante da
operação Lava Jato, que quase destruiu a Petrobrás e a respeitada
indústria de construção pesada do país, terem sido treinados nos Estados
Unidos e apetrechados com os instrumentos e as ferramentas da chamada lawfare.
Tampouco é por acaso que uma das primeiras medidas do governo de Temer
foi a alteração de algumas regras do regime de exploração do pré-sal,
buscando dar maior espaço para as grandes petroleiras mundiais.
Finalmente não se pode deixar de mencionar a relação despolitizada da
população beneficiada pelas políticas implantadas pelos governos do PT
com essas mesmas políticas e programas, por culpa, é preciso que se
diga, do próprio partido. Combinada com a irrefreável ascensão das
igrejas pentecostais e sua teologia da prosperidade (não estranha, muito
ao contrário, ao referido ideário do neoliberalismo), essa
despolitização foi decisiva para a aceitação totalmente acrítica do
tsunami de fake news advindo da campanha de Bolsonaro contra o candidato
do PT no segundo turno, Fernando Haddad – que ele incentivaria o
incesto, que teria estuprado uma menina de 11 anos, para mencionar
apenas duas das incontáveis mentiras sobre ele que foram sendo
persistentemente propagadas por milhares de robôs, cujos links
apresentavam como local de origem os EUA.
A dez dias da realização do segundo turno, a divulgação pela imprensa
do financiamento desse ataque digital nas fechadas redes de whatsapp
por dinheiro de caixa 2 proveniente de empresas, o que é proibido pela
atual legislação brasileira e considerado crime eleitoral, deu alguma
esperança de que o fascismo da campanha de Bolsonaro seria afinal
derrotado, mas esse desfecho feliz não aconteceu. O juiz Sergio Moro,
que disse que a corrupção destinada a caixa 2 de campanha eleitoral é
ainda mais perniciosa do que a corrupção destinada ao enriquecimento
pessoal porque constitui um ataque direto à democracia, acaba de aceitar
o convite de Bolsonaro para ser o seu ministro da justiça. Não é
preciso dizer mais.
Fonte Outras Palavras