Bolsonaro, seus filhos e os bolsonaristas não poderão mais atacar Lula, a esquerda, o PT, o PSol e os movimentos sociais com a mesma desenvoltura que vinham atacando. As oposições agora também estão municiadas para o fogo cruzado. O Ministério Público, o Judiciário e Sérgio Moro foram postos contra a parede pela crise. Ou darão respostas claras e convincentes à sociedade ou a máscara enganosa de sua imparcialidade será rasgada para revelar rostos acabrunhados ou desavergonhados da cumplicidade com a corrupção e com o crime.
Por Aldo Fornazieri – Professor da Escola
de Sociologia e Política (FESPSP)
O escândalo que envolve
Flávio Bolsonaro e a própria família do presidente da República vem se
revelando bem mais grave do que parecia no início: suspeita de lavagem
de dinheiro, de corrupção e até de envolvimento com as milícias. Este
escândalo tem um grande alcance na disputa política em geral e na
disputa pelo poder. Ele representa a queda moral dos bolsonaristas, pois
eles eram os detentores quase exclusivos do discurso moral, condição
que lhes dava grande vantagem estratégica já que os mantinha na ofensiva
retórica e embretava seus adversários, principalmente o PT, numa já
prolongada defensiva.
Se a queda moral dos
bolsonaristas ainda não representa uma reversão das posições
ofensiva/defensiva na relação com o PT e o campo progressista, ao menos,
no momento, equilibra um pouco mais o jogo nas escaramuças e do fogo
cruzado da política entre governistas e oposicionistas. O desfecho da
luta pela ocupação da posição ofensiva vai depender do desdobramento da
crise, das ações do governo, das ações da oposição e da virtude e
capacidade dos líderes em conduzir as batalhas.
É importante observar que
nenhuma força que detém o poder conseguirá mantê-lo se estiver numa
longa defensiva moral. Da mesma forma, nenhuma força de fora do poder
conseguirá vitórias significativas se estiver na defensiva moral. Na
política brasileira recente sobram exemplos para ilustrar essas
situações. Mesmo no campo militar, a defensiva moral é coveira de forças
poderosas. Basta lembrar o exemplo dos Estados Unidos no Vietnã:
lutavam uma guerra injusta que os colocou na defensiva moral junto à
opinião pública interna e internacional, fator decisivo na sua derrota e
retirada dos americanos. Ocorre que a defensiva moral erode a
autoridade, a legitimidade, a confiança e o ânimo de quem a carrega, por
mais meios de poder que detenha.
A moralidade, assim como a
perversidade e o egoísmo, é uma potência inerente à natureza humana.
Sua aspiração torna-se mais forte à medida em que as sociedades se
humanizam e se civilizam, afirmam direitos, justiça, igualdade e
liberdade. A exigência de conduta moral tornou-se um paradigma do
republicanismo clássico por entender que o Estado deve ser res publica. E daí vem o forte repúdio às práticas de corrupção.
A exigência de moralidade
na vida pública, no entanto, não está isenta de problemas. Ocorre que o
discurso moral pode ser manipulado e tornar-se moralismo. O moralismo
pode ser entendido como aquela atitude que se empenha em moralizar todas
as coisas e situações sem expressar uma compreensão sobre as quais o
moralismo se manifesta. Assim, o moralismo se esvazia de conteúdo e se
torna uma mera retórica incitadora de valores igualmente vazios.
Veja-se, como ilustração, a fórmula “O Brasil acima de todos e Deus
acima de tudo”. O que significa isto? Nada! Trata-se de um mero
formalismo, carente de qualquer conteúdo, de qualquer significado real.
Ocorre que o moralismo
vem imbricado com uma aspiração justa: o combate à corrupção, embora o
moralismo seja incapaz de combate-la, pois esta requer leis pertinentes
de punibilidade, a certeza de sua aplicabilidade e mecanismos de
controles públicos e sociais do poder. Ademais, o moralismo vem
carregado com as ideias de purificação, de pureza e de limpeza, mesmo
que esta seja feita pelos instrumentos demoníacos da violência. O
moralismo político, por ser um ardil na busca do poder ou de sua
manutenção, sugere a violação da Constituição e das leis em nome da
pureza. Ele contamina a decisão judicial, pois os juízes emitem
sentenças, não a partir da Constituição, das leis e da técnica jurídica,
mas a partir de sua vontade moral. Contamina as políticas públicas,
pois estas também são moldadas a partir dos valores morais dos agentes
públicos e políticos e não a partir das necessidades e dos direitos
sociais dos cidadãos. Contamina também a elaboração legislativa, pois a
carga moral conservadora privilegia grupos específicos e bloqueia
direitos civis e políticas sociais necessárias.
O moralismo, em nome de
valores genéricos e vazios, escamoteia os que são os verdadeiros
injustos e os injustiçados e disfarça a injustiça real assentada na
desigualdade, pois a sua clivagem é entre os puros e os impuros. O
moralismo é uma forma de autoritarismo e pode generalizá-la, pois, em
nome dos valores morais, a alteridade é negada e pretende-se construir a
nação como um lugar exclusivo para os iguais iniciados na comunidade
dos puros. Em regra, os moralistas são hipócritas já que não praticam o
pregam e usam o próprio moralismo não para uma melhora moral da
sociedade, mas para conquistar e manter o poder. Não há um conteúdo
moral no moralismo, mas mero uso instrumental.
Note-se que quase todos
os políticos que foram às ruas exigir moralidade pública e o impeachment
de Dilma se revelaram como moralistas sem moral, pois eram corruptos
juramentados. O sistema, corrupto que era de fato, entrou em colapso,
mas não foi superado. Valendo-se dessa situação, Bolsonaro apresentou-se
como o último baluarte da moral e como o candidato antissistema. Sem
que se completassem ainda 30 dias de governo, esse baluarte ruiu e
mergulhou nas profundezas apodrecidas do sistema. A família Bolsonaro
emergiu desse lodo como uma família de moralistas sem moral. Com isso,
Bolsonaro perdeu a pureza e a condição de ser o eleito de Deus, por
revelar-se um pecador.
Há que se notar que o
discurso moralista tem uma grande capacidade persuasiva e de
convencimento nos momentos das disputas, pois ele se isenta de fornecer
explicações racionais. Este poder persuasivo aumenta se a sociedade está
desesperançada, mergulhada na crise e nas vicissitudes do desemprego e
da pobreza. Todo o mal é atribuído à corrupção que, de fato, é um mal,
mas não o único e talvez nem o mais importante. Já o moralismo instalado
no poder é um instrumento frágil de sua manutenção, pois o elemento
mais valioso da manutenção do poder são os resultados proporcionados
pelo governante em benefício dos governados. Quando os governados se
sentem enganados, a sua cobrança por resultados será mais incisiva e o
repúdio ao governo fracassado será ainda mais contundente. Este agora é o
grande risco de Bolsonaro que poderá ver sua lua de mel com os
eleitores drasticamente reduzida.
O equacionamento da crise
Queiroz-Bolsonaro não é fácil. A solução mais radical seria a renúncia
de Flávio ao mandato de senador. O presidente Jair Bolsonaro, claro, não
pode ser imputado pelos elementos do escândalo, mas pode ser
investigado, o que o enfraquecerá politicamente. Se a crise se agravar,
poderá ocorrer um aumento da tutela dos militares sobre o presidente. Se
se tornar incontrolável, no limite, poderá ser pressionado a renunciar.
Mas a hipótese mais provável é que ele permaneça na presidência sob
forte tutela dos generais de seu governo.
Bolsonaro, seus filhos e
os bolsonaristas não poderão mais atacar Lula, a esquerda, o PT, o PSol e
os movimentos sociais com a mesma desenvoltura que vinham atacando. As
oposições agora também estão municiadas para o fogo cruzado. O
Ministério Público, o Judiciário e Sérgio Moro foram postos contra a
parede pela crise. Ou darão respostas claras e convincentes à sociedade
ou a máscara enganosa de sua imparcialidade será rasgada para revelar
rostos acabrunhados ou desavergonhados da cumplicidade com a corrupção e
com o crime.
A crise Queiroz-Bolsonaro
é a continuidade da crise anterior, é a crise de um sistema falido que
não quer morrer. É a crise da incapacidade das forças políticas em
reformar o sistema. É a crise da falta de lideranças virtuosas e
corajosas. O que se tem são políticos acostumados à política miúda, aos
conchavos, à manutenção de uma ordem institucional ineficiente que
esmaga os direitos dos cidadãos. É a crise da manutenção dos privilégios
inescrupulosos e criminosos que condenam o futuro da juventude e do
país.
O escândalo
Queiroz-Bolsonaro desfez o mito do justiceiro da pureza e fechou o
caminho aos bolsonaristas em sua caminhada rumo à comunidade dos
bem-aventurados. Agora eles precisam caminhar na estrada dos malditos
junto com gente pecadora do PT, do PSol, do MDB, do PSDB etc. É neste
jogo brutal dos interesses e das necessidades que os bolsonaristas terão
que se ater. Sem o manto da pureza, terão que se revelar quem realmente
são. E se o governo não for capaz de dar respostas às dramáticas
necessidades sociais, a onda bolsonarista poderá se espatifar nas mãos
de um povo irado, pois o povo não perdoa moralistas sem moral.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP)