Camacho, forte protagonista do golpe de Estado na Bolívia, ilustra o importante papel das igrejas neopentecostais no xadrez geopolítico latino-americano. Como a “teologia da prosperidade” ajuda a consolidar o neoliberalismo
Por Bruno Reikdal Lima, no GGN
Em entrevistas como as concedidas a Estela Fernández e a Germán
Gutiérrez, o economista e filósofo alemão Franz Hinkelammert, que
trabalhava nos movimentos de apoio à Unidade Popular e ao governo de
Salvador Allende, relembra dos acontecimentos subsequentes ao golpe
militar de Pinochet, em 1973. Hinkelammert comenta que foi no dia
seguinte, acompanhando as notícias nas rádios e televisões, que
compreendeu o papel ideológico que a religião cumpria na legitimação da
violência e do laboratório neoliberal que ali nascia. Ouvia as
celebrações e os discursos ufanistas de líderes religiosos como os de
padre Raúl Hasbún (a quem considerava o golpista mais extremado) e
concluía que havia uma estrutura teológica que realizava a justificativa
ideológica para o golpe e, mais ainda, a legitimação das reformas
neoliberais. Em um país majoritariamente católico, a disputa teológica
era campo de uma guerra ideológica. Nessa situação, em contato com
teólogos da libertação que conhecera nos movimentos sociais,
Hinkelammert se reencontrou com a máxima de Marx em 1844: “a crítica da
religião é o pressuposto de toda crítica”.
O filósofo e economista alemão desenvolveria a partir de
então o campo teórico peculiar de sua produção: a ideologia da economia,
que para ele encontrava seu ponto de partida na crítica da religião.
Passaria a trabalhar junto com teólogos da libertação e cientistas
sociais do pensamento crítico latino-americano. O traço marcante de seu
trabalho é a capacidade de demonstrar como teologia e economia se
encontram no desenvolvimento de conteúdos ideológicos que legitimam
tomadas de decisão, rupturas e mesmo a manutenção de instituições e
ordenamentos sociais. Exatamente aquilo que talvez tem nos faltado ao
tentarmos interpretar as afinidades eletivas entre movimentos religiosos
conservadores e programas liberais e neoliberais. Afinidade eletiva é
uma categoria utilizada por Weber aproveitando uma expressão de Goethe
para expressar as conexões históricas não necessariamente intencionais
entre determinados conteúdos religiosos e político-econômicos (como por
exemplo a relação entre protestantismos e o capitalismo na Europa e nos
Estados Unidos).
Ao nos depararmos com as recorrentes aproximações entre evangélicos e
neoliberais nos Estados Unidos e na América Latina, em geral, não
podemos tratar nem como coincidência e nem como um plano detalhadamente
arquitetado. E nesse sentido a categoria weberiana de “afinidade
eletiva” nos ajuda bastante. Há uma relação historicamente construída,
não intencional, mas recentemente aproveitada e coordenada para a
concretização de projetos políticos claros. Os dois mais recentes são a
eleição de Bolsonaro no Brasil e o golpe de Estado contra Evo Morales na
Bolívia. Tendo-os em mente, gostaria de propor algumas pistas para
compreendermos melhor os papéis desenvolvidos pelas igrejas evangélicas
na legitimação do programa neoliberal, de modo semelhante ao percebido
por Hinkelammert ao acompanhar as celebrações e discursos ufanistas de
clérigos chilenos em 1973.
As igrejas pentecostais chegaram e começaram sua história de expansão
na América Latina no início do século XX. No Brasil, por exemplo, a
partir da década de 1910. Os missionários vindos para cá eram em geral
europeus que vivenciaram os preparativos e o próprio evento das Grandes
Guerras, assim como a ascensão das brigadas e movimentos fascistas. Os
hinos e ritos religiosos tinham tom bélico, escatológico e,
especialmente, eurocêntricos. Houveram disputas a respeito de “raça”
(quem poderia ou não participar das comunidades), de gênero (se haveria
ou não ordenamentos de mulheres, já que compunham a maioria das
comunidades desde sua gênese) e de classe (as distinções entre igrejas e
populações da periferia, onde nasceram e se enraizaram, e de centro,
onde eram instaladas as sedes das denominações). A vitória seguiu o
padrão social geral: brancos, homens e elite controlaram as tomadas de
decisão e reprimiram dissidentes. As disputas levaram mais ou menos 40
anos até a consolidação das convenções de distintas denominações e a
estabilização das instituições. Os grupos evangélicos chamados
“históricos” ou “tradicionais”, em sua maioria, passaram por menos
crises, dado que iniciavam suas atividades em regiões centrais e
majoritariamente frequentadas pela classe média dos centros urbanos.
A partir do final dos anos de 1970, ampliam-se a quantidade de
denominações e rachas internos nas instituições começam a despontar,
visando “modernizações” dos ritos, dos cultos e maior liberdade para os
fiéis, que agora já não encontravam nos ritos bélicos e no discurso
majoritariamente escatológico conteúdo suficiente – afinal, passadas as
Guerras e a demora na concretização da promessa do um fim de tudo
encontravam um mundo voltado cada vez mais para o consumo de massas e o
discurso de liberdades individuais, que seriam garantidas pelo mercado.
Ser gente é consumir e poder “optar” entre objetos de desejo. Os ritos
rígidos e retrógrados impediam essa participação dos fieis nas relações
sociais que começavam a se reorganizar sob um novo regime geral – que se
concretizaria na instituição dos Estados neoliberais em todo o
continente a partir do final dos anos de 1980.
Os anos de 1990 vem com a expansão das recém-nascidas igrejas
neopentecostais que aderiam à tão falada “teologia da prosperidade”, das
quais se destacam, por exemplo, a Igreja Universal do Reino de Deus e a
Igreja Internacional da Graça. Estas definitivamente conseguiam se
adequar ao receituário de consumo, garantindo que a expectativa em
melhorias nas capacidades de compra das famílias se encontrasse com uma
organização político-econômica que girava em torno da expansão de
crédito a massas cada vez maiores da população. Esse fenômeno, em maior
ou menor escala nos países latino-americanos, é excepcional no Brasil,
onde estas igrejas alcançam proporções gigantescas e, em 20 anos,
realizam um projeto de expansão internacional, no qual “exportam
religião”, abrindo sucursais em todo o continente e em outros lugares do
mundo, incentivando inclusive o surgimento de novos movimentos como
estes nesses países.
As massas que nos anos 2000 conseguem melhorias de vida nas
periferias dos centros urbanos, tem a explicação de seu êxito não nas
políticas econômicas de governos ou no mercado mundial de commodities,
mas na bênção de Deus e nos ritos que cumpriam em seus cultos semanais
(quando não, diários). Ou seja: a fé era testada no domingo e a
realização material chegava na segunda. As antigas igrejas pentecostais
das periferias e as mais tradicionais não desaparecem, mas são obrigadas
a realizar reformas internas tanto teológicas quanto em seus ritos para
se adequar a esse novo mundo e atender aos fiéis. Essas decisões,
contudo, já não nascem das periferias e rumam aos centros, mas partem
dos centros já organizados e institucionalizados para serem replicadas
nas periferias. Esta inversão é fundamental, pois já não se trata de uma
disputa para institucionalizar uma comunidade em formação, e sim de uma
instituição que passa a formar (e reformar) de modo planejado uma
comunidade de fiéis.
Todo esse processo ocorre de maneira semelhante em todo o continente
latino-americano, com maior ou menor impacto. De todo modo, um último
elemento que precisamos destacar é o papel do mercado religioso
estadunidense, que passa a ser fonte de conteúdo assimilado e importado
pelas igrejas evangélicas daqui a partir dos anos de 1980. O “Capitol
Ministries” fundado no final dos anos de 1990 surge como centro formador
e orientador político para lideranças religiosas nos Estados Unidos e,
hoje, passa a desempenhar um papel internacional, aproveitando o mercado
religioso estabelecido e as afinidades entre evangelicalismo e o
projeto neoliberal.
Por fim, Hinkelammert chama o regime da sociedade neoliberal que teve
como laboratório o Chile pós golpe de “totalitarismo de Mercado”, no
qual todas as relações devem ser estabelecidas, mediadas e mantidas por
mercados. As afinidades estabelecidas entre evangélicos e movimentos
neoliberais encontram nesse ponto sua maior convergência: o desejo das
massas periféricas de serem incluídas socialmente, ou seja, em uma
sociedade de “Mercado total”, de serem consumidoras – que é reafirmado e
estruturado por uma teologia da prosperidade, que coloca na promessa da
realização financeira cotidiana o sinal do projeto divino de salvação
escatológica dos fiéis. A socialização deseja é por consumo no Mercado, a
salvação encontra garantias em uma sociedade de Mercado e, portanto, o
único mundo desejável é aquele que seja mediado pelo Mercado. E esse
Mercado em nada atrapalha as tomadas de decisão de usos e costumes
religiosos da comunidade.
Assim como na vitória de Bolsonaro, o apoio das comunidades
pentecostais e neopentecostais ao golpe de Estado na Bolívia é
praticamente integral. Camacho é um religioso fanático e, nas eleições
vencidas por Evo, Chi Hyun Chung era a expressão tosca desse grupo que,
em geral, é muito coeso em suas crenças, preferências e interpretações
do mundo. E o papel que desempenharam nas massas urbanas para o golpe e
agora para o processo subsequente é fundamental: legitimar
ideologicamente a violência e as rupturas institucionais. Deus e a
liberdade serão os temas utilizados pelos ideólogos de plantão, assim
como são os pontos centrais do conteúdo propagado nas pregações, vídeos e
textos de pastores e pastoras brasileiras sobre a necessidade de se
proteger o governo Bolsonaro. A igreja de Jesus e o Livre Mercado se
aproximaram, mas isso não significa que sejam necessariamente parceiros.
Está aí a Teologia da Libertação para mostrar que durante os anos de
1960 e 1970 houve disputa pelo território religioso – e no qual
progressistas e revolucionários conseguiram vencer batalhas. O campo
religioso é um campo popular em constante disputa. Então, tentar
entender esse processo de modo crítico como procuramos indicar com
alguns apontamentos, é caminho para tentar sua transformação.