Há 54 anos, bispos da Teologia da Libertação firmaram, em Roma, compromisso com uma igreja para as maiorias. Agora, monge que assessorou D. Hélder Câmara, propõe reeditá-lo, em defesa da Mãe Terra e contra o capitalismo
Em 20 de outubro, durante o Sínodo da Amazônia, nas Catacumbas de Roma,
leigos e leigas, bispos, cardeais e padres assinaram o Pacto que renova o
compromisso da Igreja com os pobres
Por Marcelo Barros | Imagem: Guilherme Cavalli/Cimi
Continuam repercutindo nas
mídias e principalmente nos corações de muitas pessoas as imagens
e notícias de bispos e missionários/as da Amazônia, reunidos nas
Catacumbas de Domitila em Roma e refazendo o “Pacto das
Catacumbas”. Esse é o nome simbólico que recebeu um encontro de
44 bispos católicos que quiseram comprometer de forma mais profunda
a Igreja Católica com o destino dos pobres do mundo. O primeiro
“Pacto” ocorreu há mais de 50 anos. Em novembro de 1965, já se
respirava em Roma o clima dos últimos dias do Concílio Vaticano II.
Era um encontro oficial de todos os bispos católicos do mundo que
propunham uma profunda mudança de orientações na Igreja. E naquele
16 de novembro de 1965, 44 bispos de diversos países assinaram um
documento no qual se comprometiam a ser pobres e a viver inseridos no
meio dos pobres, na luta por sua libertação. Agora, no domingo 20
de outubro de 2019, mais de 200 pessoas, bispos e missionários/as da
Amazônia, presentes no Sínodo em Roma, refizeram o Pacto das
Catacumbas, dessa vez, em um compromisso firme e inequívoco com os
povos originais e com a defesa da mãe Terra, nossa Casa Comum.
De
fato, diferentemente do primeiro Pacto, esse novo documento foi
assinado por bispos, missionários/as e outras pessoas que quiseram
assinar. Além disso, pode-se compreender que se trata de um
documento aberto a ser retomado e adaptado às diversas situações
de outras regiões do nosso país e do mundo.
De
fato, na América Latina e no Brasil de hoje, os desafios da Amazônia
se reproduzem praticamente por todas as outras regiões. De norte a
sul, leste a oeste, os povos indígenas estão, como nunca, ameaçados
em sua sobrevivência. As nossas sociedades enfrentam uma
desigualdade social maior do que antes e as condições ambientais
são sempre mais agredidas e a sustentabilidade da Vida no planeta
ameaçada.
Todos
sabem que, nesses dias, nas praias do Nordeste brasileiro, enquanto o
presidente cuida de garantir uma embaixada para o seu filho, muitas
pessoas das comunidades locais se unem para limpar as belas praias do
nosso litoral do estrago provocado pelas toneladas de petróleo
derramadas no mar.
É
bom ver que muitos setores da Igreja Católica e de outras Igrejas
retomam uma opção fundamental de serviço à Vida e de cuidado com
a Ecologia Integral. Para isso, assumem uma opção pelos pobres e se
propõem a unir o grito da terra e o grito dos pobres.
As
catacumbas de Roma lembram o martírio de cristãos, vítimas do
império que assassinava pessoas que não se rendiam ao culto do
imperador. No Brasil, sabemos onde estão as catacumbas das vítimas
da violência policial no Rio de Janeiro e em todas as cidades
brasileiras. Nas periferias de nossas cidades, quantas são as
catacumbas onde são enterradas as vítimas do tráfico que rouba a
vida de tantos/as jovens? Não bastam catacumbas para lembrar a
memória dos milhares de jovens pobres, a maioria negros,
assassinados a cada noite nas periferias de nossas cidades.
Em
Roma, os cristãos velam a memória dos mártires e celebram uma ceia
que simboliza o anúncio de que a vida vence a morte. Qual o rito
profético nos confirma que os/as mártires do Capitalismo, do
Latifúndio, do Agronegócio, das mineradoras e da exclusão social
na desumanidade nossa de cada dia não perderam as suas vidas em vão?
Que profecia leiga celebra o martírio dos rios assassinados pelas
mineradoras e chora o mar poluído pelo petróleo extorquido pelas
multinacionais aos quais os atuais governos servem? Será que um novo
Pacto pela Vida dos excluídos e da Mãe Terra poderia ser essa nova
ceia da vida que aponta insurreição e ressurreição? Poderia esse
novo Pacto das catacumbas nossas de cada dia ser assumido pelas
comunidades, grupos e organizações sociais? Será que podemos ir
engravidando um tempo de mutirão social para que as pessoas e grupos
de toda a sociedade civil possam, do seu modo e aplicados às suas
realidades, assumir e refazer esse pacto fundamental pela vida e pela
justiça?
É
urgente um processo permanente de diálogos e iniciativas que
expressem o envolvimento como sujeitos da juventude de periferias,
dos povos indígenas, quilombolas, lavradores/as e todos os irmãos e
irmãs excluídos da sociedade, aos quais se unam aliados e aliadas
das mais diversas categorias sociais em um compromisso efetivo e
afetivo pela Vida, pela Justiça eco-social e com a mãe Terra. Esse
novo Pacto das Catacumbas, que, nesses dias, foi assinado por bispos
e missionários em Roma, se tornará mais e mais profético se
reenviar todas as pessoas de boa vontade às mais diversas catacumbas
do mundo, catacumbas simbólicas, que testemunham os muitos modos
como o sistema capitalista mata as suas vítimas.
No primeiro pacto em 1965, os
bispos se comprometeram em ser pessoalmente pobres e em viver uma
comunhão com os pobres. A Teologia da Libertação nos ensinou:
Junto com os pobres, contra a pobreza injusta. O atual pacto
das catacumbas olha os pobres, não cada um por si apenas como
pessoas. Eles e elas o são e devem ser vistos como tal. No entanto,
são também coletividade e o compromisso é com o imenso povo dos
pobres, organizado em diversas categorias sociais e na luta pela
libertação.
Hoje,
a nossa sociedade se tornou um imenso conjunto de catacumbas. É
preciso que, onde o senso comum está habituado a encontrar a memória
da opressão e da morte, o amor solidário que grita em nossos peitos
engravide ensaios de uma ação profunda e permanente de toda a
sociedade civil em função da justiça eco-social e da
sustentabilidade. O cuidado com a vida e a segurança dos mais pobres
e a sustentabilidade da Vida no planeta são prioridades tão
essenciais que devem ser metas prioritárias de toda a sociedade
civil. As Igrejas, despertadas em sua missão de testemunhas do reino
de Deus, são sentinelas que anunciam que a noite quase passou e a
madrugada da libertação já começa a clarear.
Zigmunt
Bauman, sociólogo e filósofo polonês, que denunciou as sociedades
contemporâneas como sociedades líquidas, insistia que os arquitetos
sabem o estado de sanidade de um viaduto se a viga mais frágil da
construção está sadia. Do mesmo modo, uma sociedade só pode ser
considerada sadia se considera prioritário o cuidado com sua parte
mais frágil: os setores sociais mais pobres e injustiçados. No
momento atual, os gritos dos empobrecidos e excluídos da sociedade
se unem ao grito da mãe Terra, nossa casa comum.
Para
responder a esses desafios, temos mesmo de elaborar e assinar novos
documentos e pactos pela Vida e pela humanidade. E que esses
compromissos assinados nos levem a uma luta conjunta e articulada no
compromisso concreto da vida cotidiana. O fato de discutir e elaborar
os compromissos necessários é importante para ampliar o trabalho
comum e testemunhar ao mundo inteiro a retomada de uma caminhada
popular que, em tempos mais recentes, parece ter se tornado menos
visível.
O
próximo sábado 16 de novembro cairá na véspera do domingo que o
papa Francisco propõe seja o 3º Dia Mundial dos Pobres. Seria uma
data excelente para que em nossas paróquias e comunidades, o maior
número possível de pessoas aceite assinar um novo Pacto das
Catacumbas, como compromisso de inserção e comunhão com os mais
pobres e com a Terra nossa mãe.