A liberdade burguesa, que foi, no século XVIII, uma arma contra as tiranias feudais, transformou-se, no século XIX, numa arma contra as reivindicações operárias. Foi em nome da liberdade que em 1841 a burguesia se opôs à lei contra o trabalho das crianças nas minas – seria uma ingerência inadmissível do estado contra a liberdade dos industriais.
(Garaudy, citado por Avelãs Nunes, 2007, p. 180
Por Felipe Calabrez
A passagem acima pode nos dar
algumas pistas sobre as tensas relações do pensamento econômico
liberal com a democracia e com os direitos sociais, tensões que vêm
desde seu nascimento.
O liberalismo, surgido como
crítica às possíveis formas de despotismo, se tornara, já no
século XIX, uma defesa conservadora dos direitos de propriedade. A
gradual incorporação das massas na cena política com a ampliação
do sufrágio também em nada se coadunava com as belas noções de
liberdade natural do indivíduo proprietário de John Locke, e a
noção de liberdade desse indivíduo elevada a princípio
fundamental e último da ordenação social, na qual o principal
problema era a limitação da ação do Estado despótico, já havia
sido desmascarada por Marx: Liberdade é propriedade, e, sendo esta,
privada, priva-se dela a maioria da população, esmagada pelas
necessidades materiais de sobrevivência.
As revoltas operárias, as
pressões pelo sufrágio e a irradiação das correntes socialistas
sinalizavam que a modernidade não entregara o prometido. E o
liberalismo se viu obrigado a assimilar diversos elementos, se
ramificando em correntes, como, por exemplo, os utilitaristas, que,
vale lembrar, produziu reformadores sociais que se aproximaram do
socialismo, como Stuart Mill. A verdade é que o capitalismo
histórico pouco se assemelhava à descrição naturalista do mundo
que partia dos primeiros liberais. Essa tensão foi captada por Karl
Polanyi, que acusou os liberais de cometerem uma “falácia
economicista”, que consistira em tomar por natural uma lógica de
mercado (oferta-demanda-preço)
e por mercadorias reais elementos que não passariam de “mercadorias
fictícias”, como a terra e o trabalho humano. Dessa maneira, o
liberalismo teria produzido, desde suas origens, uma visão normativa
de mundo e um Estado liberal que agiu para construir essa ordem
social, organizando mercados e criando “mercadorias fictícias”,
ao mesmo tempo em que, por outro lado, agiu para limitá-lo, um
“contramovimento” que se dá em nome da preservação da
sociedade.
Essa tensão entre a lógica
totalizante do mercado e os movimentos de preservação da sociedade
é, portanto, constitutiva da política moderna. Ao contrário do que
a lógica poderia sugerir, no entanto, o pensamento econômico
liberal não ruiu com a falência da ordem liberal ocorrida nos anos
1930, mas, como sabemos, germinou e ganhou expressão política nos
anos 1970 com o chamado neoliberalismo.
O neoliberalismo, como
demonstraram de maneira magistral Dardot e Laval, rejeitou a visão
naturalista dos primeiros liberais colocando em seu lugar uma visão
muito mais normativa, impositiva, sobre o funcionamento do mundo
social. É preciso “purificar a economia” das más ingerências
públicas, aquelas que impedem a irradiação da lógica
mercadológica para todas as esferas da vida. Nesse sentido, não
seria precisa a afirmação de que os neoliberais são a favor do
laissez-faire. Eles
são na verdade reformadores sociais; são a favor do
“intervencionismo liberal”, que não se confunde com
interferências na lógica mercadológica de alocação de recursos e
formação de preços em situação de competição. A intervenção
aqui é a própria imposição dessa lógica. Há que se falar aqui
em “liberalismo construtor”.
A lei e a ordem
As democracias contemporâneas
têm passado por fortes turbulências em toda parte. A América
Latina, em especial, tem se demonstrado um barril de pólvora, com
grandes levantes de massa no Chile, Equador e Colômbia, além do
retorno de golpes militares, como na Bolívia. Seria superficial e
apressado atribuir todas essas tensões a uma única causa, mas
parece possível esboçar duas linhas de investigação para esses
fenômenos: i) O esvaziamento do centro do espectro político, com a
acirrada crítica ao establishment
tem produzido a polarização das estratégias políticas, até o
momento com muito mais intensidade e violência por parte da
extrema-direita. ii) Como possível causa dessa polarização tem-se
a insatisfação com a “terceira-via”, uma centro esquerda que
assumiu a gestão do capitalismo pós-globalização e se mostrou
incapaz de entregar as benesses prometidas pelo triunfo absoluto do
capitalismo. Digo-o de maneira bastante generalista, dadas as nuances
e as formas como se manifestou em diferentes lugares, como, por
exemplo, na própria América Latina.
O fato é que o governo
Bolsonaro, expressão de uma extrema-direita raivosa e
antidemocrática, já anunciou estar monitorando os levantes
populares nos países vizinhos e se apressou em apresentar um projeto
de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que pretende instaurar um
dispositivo chamado excludente de ilicitude, que, como confessado
pelo próprio presidente, pretende coibir protestos violentos, ao que
o mandatário do Executivo
chamou de terrorismo. Trata-se de preparar o aparelho de guerra do
Estado contra sua população sem o risco de que isso lhe traga
futuros problemas legais. O governo parece querer se preparar para
uma guerra contra um inimigo (interno) que ainda nem se manifestou. E
isso ocorre ao mesmo tempo em que seu “superministro” envia um
ambicioso projeto de desmonte do Estado brasileiro e redução de sua
capacidade de prestação de serviços essenciais à população em
nome de um discutível equilíbrio fiscal que penaliza os mais pobres
sem qualquer disfarce. Como não há limites, na mesma semana o mesmo
superministro propõe um programa de suposta geração de empregos
que visa cobrar imposto sobre o seguro-desemprego, para perplexidade
geral.
Outra confissão de Bolsonaro, há
preocupação do governo sobre o envio das propostas de reforma
administrativa e tributária ao Congresso em virtude dos protestos
latino-americanos, pois há receio do efeito contágio. Novamente,
como não há limites, o superministro afirma em entrevista coletiva
em Washington que, diante das críticas do ex-presidente Lula à sua
agenda econômica não há que se assustar se alguém falar em AI-5!
O Fiador
Muitos se perguntaram o que teria
aproximado um ambicioso homem de negócios, fundador de um banco de
investimentos (Pactual), gestor de fundos milionários (Bozzano) e
que gosta de fazer dinheiro no cassino do capitalismo financeiro se
arriscando em operações de day trade, se aproximar de uma
figura grotesca, de inteligência limitada e admirador dos porões do
DOI-CODI. O que um economista admirador de um teórico “amante da
liberdade” teria visto em um militar medíocre e parlamentar
medíocre, amante de um torturador?
A verdade é que os gestores do
dinheiro não nutrem simpatia pelos horrores do autoritarismo. Apenas
não se importam com ele. Quando perguntado sobre sua passagem pelo
Chile de Pinochet, para lecionar a convite de um apoiador do regime,
Paulo Guedes afirmou:
“Eu sabia zero do
regime político. Eu sabia que tinha uma ditadura, mas para mim isso
era irrelevante do ponto de vista intelectual.”
E aqui retornamos ao ponto abordado no início desse texto. A visão
de mundo ultraliberal é essencialmente impositiva. No limite,
autoritária. A missão que animava a sociedade Mont Pelerin ou o
Colóquio Walter Lippmann era construir um mundo de acordo com sua
visão, segundo a qual a lógica mercadológica é a forma superior
de organização do mundo social e deve, por isso, ser totalizante.
Esse mundo, portanto, deve ser produzido. Desse modo, tudo aquilo que
foge à essa lógica deve ser eliminado. Como essa lógica nada tem
de natural, tal realidade deve ser constantemente produzida. Não por
outra razão um programa de infinitas reformas é, desde os anos
1980, a agenda dos liberais. Quanto mais liberal, mais reformas são
vistas como necessárias.
O projeto megalomaníaco que Paulo Guedes quer fazer passar no Brasil
demanda ampliados poderes de Estado e reformas radicais, a começar
pela eliminação do caráter social-democrata expresso na
Constituição Federal. Pergunte-se por quê alguém tão liberal
precisaria de um “superministério”. E sobre a estratégia de
constitucionalizar todas as medidas, desde uma regra de gasto até a
política macroeconômica? Não seria muito apego a regras e à
Constituição, por parte de um liberal convicto? A resposta, como
vimos, é negativa. Trata-se precisamente de constitucionalizar as
ações (e inações) do Estado, produzindo o que Laval e Dardot
chamam de intervencionismo jurídico, isto é, não se trata de um
intervencionismo administrativo que estorva as empresas e os gestores
do dinheiro, mas, ao contrário, de garantir a criação de mercado
em todas as esferas (mercados de saúde, de educação, de
aposentadorias, de dívida pública) e de assegurar o direito
inalienável, sobre todas as coisas, à propriedade. Trata-se, enfim,
de uma criação jurídica, que exige poder do Estado e impõe uma
agenda política.
E onde fica a democracia?
Ela, como se nota, é apenas um detalhe. Tanto pode ajudar a
viabilizar o projeto totalizante de mercado como pode atrapalhá-lo.
Como fica o projeto diante de um contramovimento de Polany?
Movimentações de resistência da sociedade, engendradas por quem
quer que seja oposição, deverão ser tratadas como terrorismo sob a
força do porrete isento de ilicitude?
Prefeririam que não, mas nada impediu o casamento com o projeto que
emergiu do esgoto do autoritarismo, uma família admiradora de
torturadores buscando controlar o Estado como clã. A verdade é que
todos sabiam, mas, cientes da “polarização”, embarcaram com um
sujeito que saiu do esgoto do autoritarismo empunhando um calibre
trinta e oito.
Como tem sinalizado Paulo Guedes, esse casamento tem passado por
recuos e estratégias. É, no entanto, menos contraditório do que
pareceu a muitos.
Fonte Outras Palavras