Esses propósitos particularistas, impostos aos que deles não se beneficiam, contaminam vasta e profundamente os modos de pensar e existir das sociedades, e estão por trás da sensação de falta de sentido, de efetivo despropósito, que hoje se alastra, juntamente os suicídios de jovens e os estados e sintomas de depressão.
Por
Flavio Lobo | Imagem:
Miguel Brieva
Você
precisa ter propósito”, dizem o seu chefe na empresa, o guru de
autoajuda, o coach, o marketing, o branding, as técnicas
psicoterapêuticas de resultados, as teologias da prosperidade,
celebridades e outros personagens que encarnam exemplos de sucesso.
Ecoam o mesmo mandamento pensadores, conselheiros e terapeutas que se
dizem críticos do status quo, do mainstream, da visão de
mundo convencional, da “matrix da realidade normal”.
Não
é curioso o fato de que a mesma demanda ressoe tanto nos discursos
mais integrados aos modelos de pensamento dominantes quanto nos que
se apresentam como alternativos?
Provavelmente
sempre se soube que ter propósito é importante em várias esferas
da vida. Mas eis que essa palavra começou a ser usada com mais
frequência, adquirindo visibilidade e brilho especiais.
Quando
uma palavra ganha aura de revelação e passa a ser cultuada como
algo quase tão indispensável para as pessoas quanto oxigênio,
muitas vezes estamos diante de um sintoma de vazio. Uma impressão de
excesso de significado pode, na verdade, ser expressão de um buraco,
de uma ausência incômoda. A palavra mágica da vez pode ser o
emblema de um fetiche. Algo que toma o lugar de uma “coisa em si”
cuja falta, se encarada a seco, seria muito perturbadora.
Um
exemplo anterior, mas ainda recente e muito presente, é o de
“comunidade”. Hoje a presença verbal e virtual de “comunidades”
no cotidiano de grande parte das pessoas do planeta é proporcional à
ausência de práticas e vivências que davam sentido e consistência
existencial à própria palavra.
Quatro
desastres anunciados
Passados
mais de 13 bilhões de anos do início do universo, mais de 4 bilhões
da formação da Terra, mais de 3 bilhões a contar do início da
vida no planeta e mais de 300 mil anos desde o surgimento do Homo
sapiens, a humanidade dispõe de um manancial de conhecimentos e
tecnologias capaz de propiciar a realização de projetos promotores
do bem-comum numa amplitude que não passaria de mero delírio poucas
décadas atrás. Mas os modelos de organização e funcionamento
social e mental dominantes não apenas limitam drasticamente a
difusão dos benefícios potenciais do atual estágio da jornada
humana: também empurram a espécie para abismos profundos e
possivelmente definitivos.
Mantidos
os atuais rumos, no melhor cenário a devastação e as mudanças
ambientais em curso tornarão a Terra inóspita para a maior parte
das espécies, incluindo a nossa; o crescimento explosivo das
desigualdades irá se traduzir na produção tecnológica de
diferenciações biológicas tão significativas que implicarão a
divisão da humanidade em diferentes espécies, como em algumas das
mais sombrias distopias de ficção científica. Além, é claro, do
constante risco de hecatombe bélica, que crescerá juntamente com os
conflitos movidos por essas mesmas crises socioambientais.
Há
ainda outro risco potencial, apontado por mentes poderosas, como a do
físico Stephen Hawking, de que o processo de desenvolvimento da
inteligência artificial (IA) atinja um ponto comparável à
massa-crítica nos fenômenos da energia atômica ou aos saltos de
capacidade cognitiva na própria evolução humana. Se assim for, de
uma hora para outra, uma superinteligência pode emergir – e
estará, provavelmente, hiperconectada às redes que mantêm a vida
cotidiana das pessoas, cidades e sociedades planeta afora. Um bebê
superpoderoso com o joystick do mundo nas mãos.
Qual
seria o propósito desse hipotético ser consciente não biológico?
Estando a própria consciência humana ainda muito longe de ser
satisfatoriamente compreendida, uma ciberconsciência emergente só
pode ser objeto de especulação.
Um
ponto de partida razoável para esse exercício de imaginação são
os propósitos humanos que hoje impulsionam o desenvolvimento da IA.
E quais são eles? Em grande parte, em conformidade com a lógica dos
mercados financeiros – lócus central de poder e riqueza no mundo
contemporâneo –, os propósitos embutidos nos algoritmos que
constituem o “modelo mental” da IA dizem respeito à busca
competitiva por ganhos, lucros, poder, controle e predomínio.
Como
será que um ser resultante de um processo evolucionário norteado
por esse tipo de propósitos compreenderá a si mesmo e agirá no
momento hipotético em que adquirir consciência? Se a criatura IA
“desperta” pensar e agir com base num substrato tecnopsicológico
comparável às disposições psicológicas do investidor cujo
propósito é ganho e acumulação sem limites, como ela nos verá e
tratará?
Frankenstein
e a esfinge
Dois
séculos atrás, Mary Shelley pensou uma criatura aberrante produzida
pela aplicação de poderes da ciência e tecnologia que lhe pareciam
iminentes naquele momento em que a Revolução Industrial começava a
transformar o mundo detonando um inédito processo de aceleração de
inovações tecnológicas, mercadológicas e socioculturais. A
criatura produzida pelo dr. Frankenstein seria, então, a mais
avançada e extraordinária obra do engenho humano, mas, em razão da
afetividade primitiva que herdara e levava no coração –
comparável aos impulsos egocêntricos do cientista que a havia
criado –, tratava-se de uma criação perigosa.
A
grande aberração engendrada pelos processos técnicos e econômicos
disparados na época de Shelley é o homem que busca, frui e acumula
recursos e poder em escala crescente e insustentável. Propósitos
que podiam fazer sentido para o caçador e o guerreiro primitivos
diante das incertezas e ameaças da natureza e de grupos rivais, mas
hoje resultam na destruição de milhares de formas de vida e impõem
riscos crescentes para a própria espécie humana.
Esses
propósitos particularistas, impostos aos que deles não se
beneficiam, contaminam vasta e profundamente os modos de pensar e
existir das sociedades, e estão por trás da sensação de falta de
sentido, de efetivo despropósito, que hoje se alastra, juntamente os
suicídios de jovens e os estados e sintomas de depressão.
Quando,
então, neste momento, em diferentes ambientes e contextos, nos
deparemos com a pergunta “qual é o seu propósito?”, vale a pena
olhar para além de cada pessoa ou discurso que a repete. Esticando o
olhar, talvez a gente enxergue a fonte dessa cobrança – ou demanda
ou súplica. Eu a imagino uma esfinge de cuja boca jorra uma
narrativa na qual poucos hoje acreditamos, mas que ainda nos enreda,
amarra e conduz. Podemos identificar essa criatura e sua ladainha aos
modelos de organização mental e social que articulam a nossa
realidade, trocando, de tempos em tempos, as palavras de ordem, na
tentativa de preservar e reproduzir a lógica fundamental. Mas talvez
seja mais inspirador vê-las como o ansioso espírito destes tempos,
repletos de potências criadoras e ameaças existenciais, em escala
ao mesmo tempo íntima e planetária, buscando a resposta em si
mesmo, e em cada um de nós.
Fonte Outras Palavras