O governo Bolsonaro é esse produtor fatal de uma legião de corpos que não pode e nem deve mais sentir desejos. Não sem um dia sentir uma saudade doída dos tempos que éramos tratados como gente.
Por Juliana Magalhães
Hoje
li e reli a frase dita por Paulo Guedes várias vezes. “O dólar
alto é bom. Empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa
danada”. Essa frase não saiu da minha cabeça o dia inteiro e tem
martelado até agora. Esse mal dito me embrulhou o estômago, me fez
lembrar de todas as realidades, da minha família, da minha cidade,
das vinte e quatro mil pessoas que têm tentando sobreviver nas ruas
da cidade de São Paulo e de toda essa miséria circundante e
escancarada que não para de crescer e que só não nos engole mais
porque estamos de novo em um ponto da história em que estamos
naturalizando a violência.
Quando
saímos de um lugar muito pobre e conseguimos ocupar algum espaço de
privilégio mínimo é sempre um processo difícil desde à projeção
à concretização de fato. Toda apropriação é acompanhada de um
sentimento esquisito de não-pertencimento e que se manifesta muitas
vezes como desconforto. Não somos ensinados a nos projetar na
Disney, nas universidades, nas atividades intelectuais, nos grandes
cargos ou ganhando grandes salários. Isso é um projeto de Brasil e
América Latina já antigo mas que ainda hoje persiste para cercear
qualquer possibilidade de voo, qualquer coisa que nos afaste da
superfície da terra. O mais difícil e dolorido de todo esse
processo é a projeção que exige um exercício de confiança e
imaginação que também nos foi recusado. Há o desejo. Claro.
Sempre houve e sempre haverá. Todo mundo que é pobre quer romper as
fronteiras da pobreza e a projeção é o início da dificuldade.
Você precisa forçar a vista para se projetar naquele lugar, se ver
ali realizando um sonho que aparentemente não foi feito para você.
E é difícil pois nos é ensinado a querer menos do que os outros e
a aceitar menos. Abre aspas: você
deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado.
O nosso desejo deve ser sempre limitado. E a palavra “menos” que
se traduz às vezes no desejo “menos” vem dessa imposição da
classe média de não aceitar de forma alguma que a gente queira mais
ou seja mais pelo simples fato de odiar a palavra pobre, a sua
origem, o cheiro, as roupas, as falas, o corpo e tudo que constrói o
imaginário e a concretude do que é ser realmente pobre.
Esse ódio ao pobre que não se dilui no decorrer da história nada
mais é que a atualização do ódio que os senhores brancos e ricos sentiam
pelos seus escravos. As pessoas não odeiam o partido dos trabalhadores
porque é corrupto. Não foi por ser corrupta que a Dilma caiu, não foi
por ser corrupto que o Lula foi preso. Paulo Guedes, Bolsonaro e toda a
classe que esses homens representam odeiam é a possibilidade do pobre
romper as fronteiras que já foram dadas por eles. Odeiam o nosso sonho.
Odeiam a diminuição das distâncias entre eles e nós e sobretudo a
ascensão da classe trabalhadora. Essa classe que eles sentem nojo. Só
nos querem e nos aceitam nos lugares mais subterrâneos possíveis. Da
cinematografia da estética da fome de Glauber Rocha à Anna Muylaerte no
filme Que horas ela volta a gente percebe que a nossa fome é
que o alimenta o gozo dessa classe. Quanto mais miserável somos ou
estamos mais essa gente se regozija, num prazer quase sexual e
psicopata. Não cabe a esse corpo que nasce, cresce e se desenvolve nos
“subúrbios” brasileiros e que conquistou direitos básicos nos últimos
anos possuir o mesmo nível – ou um nível superior – de instrução,
inteligência ou de autoestima que eles. Eles constroem um mundo que não
podemos acessar e por isso precisamos estar sempre saciando essa
nostalgia da escravidão. É preciso possuir aquele ar acuado – sem
nenhuma poesia – de quem sabe o seu lugar de inferioridade. É preciso
abaixar a cabeça, sorrir, e estar sempre pedindo desculpas ou
agradecendo por tudo. É preciso ter a consciência de sua mediocridade
histórica. Se não, nada feito. Querem destruir essa ideia tão recente de
que todo mundo pode se comportar feito gente e desejar coisas de gente.
O governo Bolsonaro é esse produtor fatal de uma legião de corpos que
não pode e nem deve mais sentir desejos. Não sem um dia sentir uma
saudade doída dos tempos que éramos tratados como gente.
Fonte Outras Palavras