terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

AOS POBRES, A XEPA


O governo Bolsonaro é esse produtor fatal de uma legião de corpos que não pode e nem deve mais sentir desejos. Não sem um dia sentir uma saudade doída dos tempos que éramos tratados como gente. 




Por Juliana Magalhães

Hoje li e reli a frase dita por Paulo Guedes várias vezes. “O dólar alto é bom. Empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada”. Essa frase não saiu da minha cabeça o dia inteiro e tem martelado até agora. Esse mal dito me embrulhou o estômago, me fez lembrar de todas as realidades, da minha família, da minha cidade, das vinte e quatro mil pessoas que têm tentando sobreviver nas ruas da cidade de São Paulo e de toda essa miséria circundante e escancarada que não para de crescer e que só não nos engole mais porque estamos de novo em um ponto da história em que estamos naturalizando a violência. 

Quando saímos de um lugar muito pobre e conseguimos ocupar algum espaço de privilégio mínimo é sempre um processo difícil desde à projeção à concretização de fato. Toda apropriação é acompanhada de um sentimento esquisito de não-pertencimento e que se manifesta muitas vezes como desconforto. Não somos ensinados a nos projetar na Disney, nas universidades, nas atividades intelectuais, nos grandes cargos ou ganhando grandes salários. Isso é um projeto de Brasil e América Latina já antigo mas que ainda hoje persiste para cercear qualquer possibilidade de voo, qualquer coisa que nos afaste da superfície da terra. O mais difícil e dolorido de todo esse processo é a projeção que exige um exercício de confiança e imaginação que também nos foi recusado. Há o desejo. Claro. Sempre houve e sempre haverá. Todo mundo que é pobre quer romper as fronteiras da pobreza e a projeção é o início da dificuldade. Você precisa forçar a vista para se projetar naquele lugar, se ver ali realizando um sonho que aparentemente não foi feito para você. E é difícil pois nos é ensinado a querer menos do que os outros e a aceitar menos. Abre aspas: você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado. O nosso desejo deve ser sempre limitado. E a palavra “menos” que se traduz às vezes no desejo “menos” vem dessa imposição da classe média de não aceitar de forma alguma que a gente queira mais ou seja mais pelo simples fato de odiar a palavra pobre, a sua origem, o cheiro, as roupas, as falas, o corpo e tudo que constrói o imaginário e a concretude do que é ser realmente pobre.

Esse ódio ao pobre que não se dilui no decorrer da história nada mais é que a atualização do ódio que os senhores brancos e ricos sentiam pelos seus escravos. As pessoas não odeiam o partido dos trabalhadores porque é corrupto. Não foi por ser corrupta que a Dilma caiu, não foi por ser corrupto que o Lula foi preso. Paulo Guedes, Bolsonaro e toda a classe que esses homens representam odeiam é a possibilidade do pobre romper as fronteiras que já foram dadas por eles. Odeiam o nosso sonho. Odeiam a diminuição das distâncias entre eles e nós e sobretudo a ascensão da classe trabalhadora. Essa classe que eles sentem nojo. Só nos querem e nos aceitam nos lugares mais subterrâneos possíveis. Da cinematografia da estética da fome de Glauber Rocha à Anna Muylaerte no filme Que horas ela volta a gente percebe que a nossa fome é que o alimenta o gozo dessa classe. Quanto mais miserável somos ou estamos mais essa gente se regozija, num prazer quase sexual e psicopata. Não cabe a esse corpo que nasce, cresce e se desenvolve nos “subúrbios” brasileiros e que conquistou direitos básicos nos últimos anos possuir o mesmo nível – ou um nível superior – de instrução, inteligência ou de autoestima que eles. Eles constroem um mundo que não podemos acessar e por isso precisamos estar sempre saciando essa nostalgia da escravidão. É preciso possuir aquele ar acuado – sem nenhuma poesia – de quem sabe o seu lugar de inferioridade. É preciso abaixar a cabeça, sorrir, e estar sempre pedindo desculpas ou agradecendo por tudo. É preciso ter a consciência de sua mediocridade histórica. Se não, nada feito. Querem destruir essa ideia tão recente de que todo mundo pode se comportar feito gente e desejar coisas de gente. O governo Bolsonaro é esse produtor fatal de uma legião de corpos que não pode e nem deve mais sentir desejos. Não sem um dia sentir uma saudade doída dos tempos que éramos tratados como gente.