Ora, essa mesma Bíblia, no Livro das Revelações, ou Apocalipse, tem um versículo destinado a todos quantos se enriquecem e enganam o povo com religiões: “Sai dela, povo meu, para que não sejas participante dos seus pecados, e para que não incorras nas suas pragas” (Apocalipse 18:4).
Por Rui Martins
Ao contrário de todos os cientistas do mundo, alguns pastores
evangélicos, entre eles Silas Malafaia e Edir Macedo, garantem não haver
nenhum risco de transmissão do coronavírus nos seus templos, durante as
pregações bíblicas, cantos de hinos religiosos e testemunhos de fé.
Como ninguém irá conferir os nomes dos mortos ou das pessoas internadas
por coronavírus com os dos membros dessas igrejas evangélicas, o risco
de um desmentido é remoto.
Como se não bastasse essa afirmação mentirosa, a Justiça também
parece compartilhar dessa crença e oferece sua ajuda. Foi assim que, na
semana passada, contra tudo e contra todos, um juiz do Rio de Janeiro
decidiu ignorar a recomendação de confinamento da Organização Mundial da
Saúde e de todos os países do mundo. O pastor evangélico Malafaia tinha
sido autorizado pelo juiz, contra decisão do governador do Rio de
Janeiro, a continuar reunindo os fiéis em suas igrejas, certo de que
Deus os protegeria do coronavírus. Diante da má repercussão dessa
vitória judicial, foi o próprio pastor quem recuou, afirmando ficarem
abertos os templos, mas sem realização de cultos coletivos. O episódio
mostra que o Brasil descobriu a máquina do tempo e decidiu retornar à
Idade Média.
O recuo do pastor Malafaia evitou um certo caos, pois a exceção
jurídica brasileira iria incentivar outras igrejas, não só evangélicas, a
desejar se beneficiar da mesma decisão judicial para suas comunidades
terem livre ingresso em seus templos e cultos, missas e sessões. Sem
medo do vírus, porque seriam protegidas por Deus, dentro das mesmas
crendices medievalescas com resultado danoso para a Europa, cuja
população morria como moscas mesmo com o uso de água benta.
E, nessa altura, qual deverá ser a nossa atitude? De um lado, um
presidente que convocou o povo para se manifestar nas ruas com o risco
de contrair coronavírus, cuja irresponsabilidade justifica um
impeachment. E agora, na sequência, um pastor pretensamente protegido
por Deus, que insistia em reunir seu rebanho de fiéis incautos em cultos
de centenas de pessoas, entre as quais haveria contaminados pelo vírus,
sujeitos a internação e mesmo com risco de morte. Nos dois casos, é
inquietante a irresponsabilidade. Ambos seriam punidos em qualquer outro
país.
O fanatismo dos evangélicos
O Brasil vive hoje em plena Idade Média. Piores do que o coronavírus
são a ignorância, o cheiro fétido do beatismo, o charlatanismo e a
enganação pregada e propagada pelos chamados pastores evangélicos. Uma
versão moderna de Deus e o Diabo na Terra do Sol, que deixaria apoplético Glauber Rocha – o ranço imanente dessa versão bíblica evangélica tirada dos porões do Mayflower, trazida ao Brasil e implantada à força de cantos e gritos histéricos na nossa cultura.
Deus acima de tudo – acima da ciência, da inteligência, da lógica, do
saber, da literatura, da história. Mas que Deus? O Deus das fogueiras
da Idade Média, das inquisições, das teorias imbecis, do céu, da
salvação das almas e do medo do inferno. O Deus dos espertos que se
aproveitam dos ignorantes, dos simples e pobres de espírito.
Nas análises do Brasil de hoje de Bolsonaro (econômicas, sociais,
políticas e outras tantas), falta este ângulo resultante da nefasta
influência evangélica – o de um Brasil destruído pela crendice bíblica,
pela mentira levada ao povo e pelas ações dos vendilhões do templo.
Enquanto o mundo inteiro se preparava para enfrentar esse novo vírus,
capaz de relançar o clima de medo, da morte e da peste que enlutou a
Europa durante 400 anos anos, um presidente cego ria do perigo, no qual
lançava seus fanáticos seguidores.
Quatro dias depois, o mesmo presidente – apostando na idiotice desses
seguidores desmemoriados – reapareceu de máscara mal colocada no rosto,
reconhecendo o risco do vírus.
Tarde demais: no domingo em que a irresponsabilidade do presidente
levou às ruas cegos seguidores em mais de 200 cidades, num fenômeno de
infecção coletiva, milhares contraíram o vírus do qual desdenhavam e em
cuja existência não acreditavam. Logo veremos as dramáticas
consequências.
Um presidente que expõe sua gente ao risco de morte não é digno do
cargo e está merecendo um impeachment imediato por motivo de saúde
pública.
Porém, isso dificilmente ocorrerá. Em torno dele, protegendo-o, estão
os sacerdotes da mentira e da morte, iguais àqueles vestidos de preto e
cheirando enxofre da Idade Média; aproveitando-se do nome de Cristo,
eles continuarão suas rendosas pregações.
Seus pobres fiéis explorados não percebem, mas seus pastores são, sem dúvida, as Bestas do Apocalipse.
Enquanto o planeta (ou será que a Terra é plana, como diz o guru do
presidente?) pede para todos evitarem sair às ruas para se proteger
contra a nova peste, Silas Malafaia, o nome de um deles, reagiu contra a
exigência de as igrejas fecharem suas portas para evitar aglomerações.
Finalmente aceitou cancelar os cultos, mas as igrejas permanecerão
abertas, prestando assistência religiosa individual.. Malafaia deve ter
uma oração secreta contra o coronavírus, enviada por Satanás, se não for
ele próprio o Capeta…
E o autoproclamado bispo Edir Macedo é outro que desdenha do risco
mortal do vírus. O grande antídoto contra todos os vírus seriam a Bíblia
e o Evangelho, versão Igreja Universal, exatamente como diziam os
sacerdotes na época da peste negra, faz sete séculos; eram os
anunciadores da morte.
Ora, essa mesma Bíblia, no Livro das Revelações, ou Apocalipse, tem
um versículo destinado a todos quantos se enriquecem e enganam o povo
com religiões: “Sai dela, povo meu, para que não sejas participante dos
seus pecados, e para que não incorras nas suas pragas” (Apocalipse
18:4).
Sou ateu, creio na capacidade do homem para vencer obstáculos como os
vírus e vencer principalmente os enganadores que se aproveitam da
ignorância para lançar seu manto de trevas, como na Idade Média.
***
Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão,
exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional
dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da
nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda
Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
Fonte Observatório da imprensa
E AS PESSOAS FICARAM EM CASA...
(Um poema de Kathleen
O'Meara, pseudônimo Grace Ramsay, escritora e biógrafa católica
irlandesa-francesa durante o final da era vitoriana. Nasceu em 1839 e
faleceu em 1888).
E AS PESSOAS FICARAM EM CASA...
E as pessoas ficaram em casa
E leram livros e ouviram
E descansaram e se exercitaram
E fizeram arte e brincaram
E aprenderam novas maneiras de ser
E pararam
E ouviram fundo
Alguém meditou
Alguém orou
Alguém dançou
Alguém conheceu sua sombra
E as pessoas começaram a pensar de forma diferente
E pessoas se curaram
E na ausência de pessoas que viviam de maneiras ignorantes,
Perigosas, sem sentido e sem coração,
Até a Terra começou a se curar
E quando o perigo terminou
E as pessoas se encontraram
Lamentaram pelas pessoas mortas
E fizeram novas escolhas
E sonharam com novas visões
E criaram novos modos de vida
E curaram a Terra completamente